Pode parecer hoje incompreensível, ou no mínimo um pouco desajustado, que alguém de esquerda reconheça sem qualquer remorso que teve um dia como modelo de uma vida com sentido, feita de entrega, de internacionalismo e de solidariedade, a partida para Israel com a finalidade de partilhar uma experiência de trabalho comunitário num kibbutz. Mas foi isso que aconteceu com muitos militantes convictos da esquerda europeia durante as décadas de 1960-1970. Deverá recordar-se, em defesa desta memória recôndita, o facto dessas pequenas colónias integrarem então espaços de trabalho e de vida partilhados, formalmente igualitários, muitos deles de orientação laica e progressista, que apesar de nessa fase já conterem algumas funções de ocupação do território haviam sido em boa parte iniciativa de organizações associadas a um sionismo judaico com caraterísticas particulares, menos defensivo e mais aberto aos outros. Muito diferente do primitivo e daquele que agora conhecemos, mais assumidamente nacionalistas, religiosos, messiânicos e extremistas.
A Liga Socialista da Palestina foi uma dessas organizações, e foi de entre os kibbutzin que saíram muitos quadros e militantes do Partido Trabalhista de Israel, quando este era ainda uma organização de esquerda que assumia uma perspetiva razoavelmente ecuménica e dialogante para a região. Entre muitos outros, o historiador Tony Judt e o escritor Amos Oz deixaram-nos testemunhos do papel desses espaços de utopia e de idealismo que a vida real depois nem sempre podia confirmar como satisfatórios face às expectativas que tinham conseguido congregar. Ambos falaram também da forma como os primórdios de Israel se confundiram, para um número significativo de judeus, com a construção de um Estado igualitário e sem dúvida multiétnico, do qual essas comunidades seriam em parte as sementes.
Esse é, no entanto, um cenário que a história recente de Israel, e uma boa parte das gerações mais próximas de judeus ali residentes, se encarregaram de quase fazer eclipsar. O drama, iniciado sobretudo com o clima político belicista e intolerante que envolveu e se sucedeu à Guerra dos Seis Dias, de 1967, assenta, para o escritor israelita Sami Michel, no facto de o Estado de Israel nunca se ter atrevido a defrontar diretamente três problemas fundamentais que o acompanham desde o nascimento. São eles o incontornável lugar que o país terá sempre de manter na região e no mundo árabe, as clivagens sociais e raciais que jamais foram resolvidas, e a separação entre o mundo laico e o universo religioso que nunca foi consumada no plano da vida política, cultural e social. Pelo contrário, as últimas gerações de políticos, infletiram no sentido do nacionalismo e da inépcia para solucionarem satisfatoriamente o conflito palestiniano, arrastando consigo parte significativa da opinião pública.
É isso que revela a sondagem publicada há pouco mais de um ano pelo diário de esquerda Ha’aretz, publicado em Tel Aviv, dando a conhecer que um terço dos judeus israelitas é contra o direito dos árabes poderem votar para um Parlamento comum, dois terços dizerem que os 2,5 milhões de palestinianos da Cisjordânia não deveriam ter o direito de votar caso este território ocupado fosse formalmente anexado, que 74% são a favor da construção de estradas separadas para árabes e judeus naquele território, e que 60% são defensores do afastamento dos árabes da administração pública. A aceitação maioritária desta forma de descriminação, com o formato sinistro do velho apartheid sul-africano, torna muito difícil a vida e o combate daqueles, não apenas judeus, que dentro e fora de Israel se continuam a bater pela única solução possível e durável para a região. A pacífica e a negociada, que recuse a exclusão ou a discriminação de quem quer que seja. Que adapte aos dias de hoje, pelo menos em parte, o ideal internacionalista e igualitário que muitos kibbutzin um dia viveram e depois viram destruído.