Será provavelmente a primeira vez que o faço de uma forma pública e com algum detalhe, mas já que se cumprem hoje quarenta anos sobre aquele 25 que mudou as nossas vidas, vou contar como vivi o meu. Eu era então militar. Em finais de 1972 fora detido pela polícia no decurso de uma manifestação estudantil contra a Guerra Colonial, que acabara com o apedrejamento de um banco considerado cúmplice da política do governo. Depois de interrogado pela PSP – e algum tempo após pela PIDE-DGS – vi o meu nome inscrito numa lista de cidadãos pouco ou nada passivos a integrar compulsivamente no Exército.
Em 17 de Abril de 1973, depois de passar o cabelo pela máquina zero, fui então «assentar praça». O que poderá fazer de mim, formalmente, um «militar de Abril». Mas não, apesar do curto mas intenso currículo de oposicionista, começado nas «eleições» de 1969, de já ter textos meus cortados pela comissão de censura e de ser assanhado ativista estudantil com ficha preenchida naquela corporação que sabemos, não tinha a menor ligação aos militares que prepararam e levaram a cabo a revolução. Sabia, por isso, tanto quanto a generalidade das pessoas: da perturbação trazida ao regime pelo livro do general Spínola, do 16 de Março nas Caldas da Rainha, dos rumores insistentes sobre um hipotético golpe dos duros do regime, do descontentamento generalizado dos militares com os quais contactava. Mas mais nada.
A 25 de Abril amanheci, pois, na expectativa de mais um normal dia de primavera. Estava na altura colocado num quartel de Coimbra, hoje fora do ativo, onde cumpria a tarefa de instrutor de tiro – a minha primeira experiência como professor, pois bem… –, ensinando jovens recrutas a usar o dedo no gatilho, preparando-os para essa infinita e injustificável guerra para a qual eu próprio deveria seguir em breve. Não dormia no quartel: como graduado, tinha a possibilidade de manter um quarto na cidade, de onde todas as manhãs saía bem cedo, já fardado, com o objetivo de conduzir uns quantos rapazes, quase todos tolhidos de medo, para ruidosos exercícios de «culatra atrás» no campo de tiro de Coselhas.
Saí de casa normalmente e seguia o meu percurso quando, junto ao Jardim Botânico, me cruzei com um grupo de populares. Quando me viram fardado com o uniforme número 3, de serviço, acreditaram estar diante de um operacional que faria parte das operações do movimento militar, do qual a rádio já havia começado a emitir os primeiros sinais, e começaram a bater palmas e a gritar uns «viva a liberdade». Por momentos ainda pensei ser engano. Isto é comigo? Os aplausos são mesmo para mim? Eram. Confuso, perguntei o porquê daquilo, o que se passava. E foi assim, pela boca de anónimos cidadãos a caminho do seu trabalho, que fiquei a saber dos acontecimentos. Que os militares, meus camaradas, estavam na rua para acabar, como diria Salgueiro Maia, «com o estado a que isto chegou».
A partir daquele instante, os dias passaram a ter 48 horas e tudo fiz, no turbilhão que se seguiu, para merecer, por pouco que fosse, aquelas palmas inesquecíveis. Ah, e é claro que nesse dia não houve instrução de tiro. Valores mais altos se alevantavam. Mas estes já não eram, felizmente – graças aos militares de Abril, aos verdadeiros militares de Abril –, os da «dilatação da fé e do império».