À medida que o ano de 1974 foi ficando para trás, a evocação do 25 de Abril foi perdendo a tonalidade vibrante que manteve nos primeiros tempos. A estabilização do regime democrático, com as suas qualidades e imperfeições, tal como a instalação progressiva de uma sociedade menos desigual, foram induzindo distanciamento. Em cada aniversário, ressurgia sobretudo a memória afetiva de quem vivera a Revolução, ou de quem a preparara nos subterrâneos do exílio ou da clandestinidade, bem como uma compreensível nostalgia por uma fase do percurso pessoal e coletivo partilhada por quem desejava o retorno das utopias perdidas. Esperando por «outro 25 de Abril», como muitos diziam com convicção mas reduzida esperança.
Decorria depois o ritual, cada vez mais oco e frio das comemorações oficiais promovidas pelas instituições públicas ou pelos partidos do arco do poder. A habitual sessão solene na Assembleia da República tornou-se uma formalidade sem alma ou reconhecimento público, enquanto muitas autarquias celebravam o dia com iniciativas mais ou menos inócuas e repetitivas, tantas vezes concebidas apenas para marcar calendário, que diziam muito mais sobre os equilíbrios ao nível do poder local do que constituíam momentos de mobilização cívica em prol da democracia. Em algumas escolas do ensino público, o panorama foi-se tornando cada vez mais desolador, com evocações ritualizadas, por vezes mal documentadas, que pouco ou nada foram transmitindo de mobilizador às novas gerações.
Este ano, todavia, algo parece diferente. E não apenas por 40 ser um «número redondo» e por isso suscitar o interesse de quem gosta de celebrações. Sob o ponto de vista simbólico, claro que não é a mesma coisa que cumprir 39 ou 41 anos. Mas tal não basta para justificar o facto de em 2014 estar a recuperar e a debater, como há já muito não acontecia, a história e a memória de Abril. A verdade é que vivemos um momento particularmente crítico da nossa vida coletiva, no qual, por razões que se prendem com a exacerbação de conflitos de interesse, ressurgem os setores que de forma extrema, à direita ou à esquerda, procuram questionar a existência da própria democracia representativa. Tudo fazendo para mostrar que o 25 de Abril foi «um erro», ou, ao invés, que «deveria ter ido muito mais além». Pela sua contínua rejeição dos valores democráticos, até há pouco quase consensuais, o próprio governo suscita este debate.
Vivemos pois este 40º aniversário num perturbante estado de indefinição em relação aos caminhos que temos para percorrer. Mas também é verdade que o 25 de Abril, naquilo que de mais essencial nos legou como exemplo, permanece – mesmo contra a vontade dos seus inimigos, durante tantos anos calados – um fator de esperança. É que, ao evocá-lo, percebermos que o futuro não depende de qualquer destino traçado por oráculos internos ou por amos absentistas com número de porta em Bruxelas ou Berlim, resultando sempre, em última instância, da participação cidadã. E percebemos também que, nos momentos decisivos, a História se faz sobretudo de ousadia lúcida e vontade de mudança. Foi assim há quarenta anos, como o será no futuro. Os tempos são outros, é certo, mas a vida coletiva desenvolve-se sempre «em perpétuo movimento».
Crónica publicada no Diário As Beiras.