Depois de dois textos sucessivos (aqui e aqui) escritos a propósito do desaire eleitoral do Bloco de Esquerda, escolhi mudar de agulha. Afinal, tudo o mais que pudesse escrever sobre o tema parecia-me uma reiteração do que já tinha escrito, produzida no desconhecimento do que pudesse estar a acontecer num debate interno forçosamente intenso. Poderia além disso mostrar-me injusto ou precipitado, coisa que desde a primeira hora escolhi evitar sempre que falo do Bloco. Todavia os acontecimentos acabaram por sobrepor-se a essa lógica de contenção e, perante a «Carta às esquerdas», assinada pelos dois coordenadores do BE e tornada pública no último domingo, concluí que algumas escolhas, a meu ver insuficientes e infelizes, foram já projetadas para o exterior, sugerindo uma lógica de continuidade, repleta de maus augúrios, que se faz à revelia de muitos dos potenciais eleitores e condicionará qualquer tentativa de inflexão. Por isso retorno ao tema.
A «Carta» de João Semedo e Catarina Martins não diz nada que a maioria dos cidadãos que se identificam com o grande arco da esquerda possa rejeitar. Pelo contrário. Fala, com toda a propriedade, da «necessidade de um diálogo aberto entre partidos e forças que lutam contra a austeridade», destinado a «juntar energias e envolver cidadãos independentes, ativistas e movimentos sociais», tomados como indispensáveis «ao esforço para a construção de uma alternativa alargada» que todos sabemos imprescindível e urgente. Recorda ainda alguma experiência de aproximação que tem sido procurada pelo Bloco, nomeadamente no que respeita à atividade parlamentar, à luta sindical e a incitativas pontuais agregadoras de vontades e objetivos. E defende a necessidade de lançar um «percurso de pensamento e articulação com vista a formas de convergência de oposição e de proposta em torno de bases programáticas claras», em condições de gerar «mobilização e entusiasmo», assim permitindo ganhar «força política, social e eleitoral». De acordo com tudo isto, que apesar do registo formal de «língua de pau» aplaudo com ambas as mãos.
Todavia, esta posição não nega escolhas recentes, a meu ver erradas, que objetivamente contrariam esses objetivos. Desde logo por não reconhecer uma dramática necessidade e uma possibilidade imediata: a realização de encontros, procurados no sentido de encontrar pontos de convergência em meia dúzia de aspetos vitais, com forças que não são abstrações mas estão desde já disponíveis para o efeito. Como o Movimento 3D (com quem muitos militantes e simpatizantes do Bloco mantêm ou mantiveram uma ligação), o PAN (que teve 57.000 votantes nestas Europeias) e o Livre (que agregou 72.000). Com este último, aliás, o BE tem mantido a incompreensível atitude de colocar aversões pessoais – que se tornaram irrelevantes no contexto presente – à frente de possibilidades de entendimento tendo em vista objetivos comuns que devem ser conquistados por pessoas mas estar acima delas. Com os resultados práticos que as últimas eleições deram a conhecer. Sem uma clarificação, sem a proposição de formas efetivas, embora necessariamente graduais de entendimento, a «Carta» não passa por isso de um conjunto de vacuidades. Bem-intencionadas, admito, mas vacuidades. Destinadas a dar resposta a um clamor de contestação interna lançado precisamente contra a débil política de alianças que antecedeu as últimas eleições. E apoiadas na ideia fantasiosa segundo a qual, com tal declaração de intenções, as equivocadas centenas de milhar de trânsfugas e desiludidos poderão iniciar o seu retorno a casa.
Ao mesmo tempo, o PS é excluído liminarmente de quaisquer convergências ou hipotéticas conversações. Concordo inteiramente que uma eventual aproximação se mantenha condicionada à assunção, pelos socialistas, ou pelo menos por parte significativa deles, de princípios programáticos fundamentais, como a rejeição do Tratado Orçamental e a renegociação da dívida. Mas declinar à cabeça qualquer convergência ou negociação, ainda que conjunturais, para mais no atual estado de indefinição interna sobre o rumo do partido, porque, como diz a «Carta», «a crispação entre os dois protagonistas não ilude o compromisso de ambos com as políticas da EU», é, no mínimo, matar à partida qualquer princípio de conversa ou confluência na ação. Dando até a sensação de que a direção do Bloco mantém, tal como o PCP o vem fazendo, que PS e PSD/CDS são praticamente «a mesma coisa», e, pior, de que será indiferente, na formação do futuro governo – pois quem mais o irá constituir? – que o seu primeiro-ministro seja Costa, Seguro ou Passos. Um partido com ambição a ser poder, ou a dele participar, que pretende ser mais que uma trincheira das esquerdas, não pode, não pode mesmo, incorrer no erro de meter tudo no mesmo saco, não reconhecendo que entre partidos, projetos e pessoas existem diferenças e conflitos de interesse. E que a maleabilidade táctica é uma condição da existência.
Fica ainda por abordar de forma clara a ligação do Bloco ao PCP, sabendo-se que a identidade bloquista foi construída na diferença de cultura política e de propostas programáticas mantida em relação a este. Parece-me evidente que a hipótese de uma frente contra o Tratado Orçamental e por uma política de não-submissão aos ditames da maioria da UE passará sempre pela participação dos comunistas. Sem qualquer dúvida. A sua experiência e capacidade de luta, o capital simbólico que incorporam, o apoio social que têm agregado, a rejeição que exprimem de uma governação submetida aos ditames do modelo económico e político neoliberal, devem sobrepor-se às desconfianças que historicamente suscitam junto de muitos daqueles com quem poderiam aliar-se, determinadas pela sua tendência para construir uma unidade assente numa procurada hegemonia, pelo estatismo absoluto de muitas das suas propostas, pela sua recusa de aceitar uma política externa não-isolacionista que mantenha Portugal como parte da Europa das nações, pelas suas posições em política internacional que o aproximam tantas vezes de regimes e experiências com as quais a generalidade da restante esquerda não está de forma alguma em sintonia. Todavia, justamente por estas características, aconselham a razão e a boa experiência que a sua presença numa eventual convergência seja sempre compensada por uma coesão orgânica dos outros grupos e setores. De modo a que aceitem participar em verdadeira paridade na luta social, sem se procurarem impor como a vanguarda que geralmente consideram ser. Sem serem menos, mas também sem procurarem ser mais.
Por tudo isto parece óbvio que a materialização da tão necessária convergência passa por uma política de abertura a todas as possibilidades. Com base, naturalmente, num conjunto mínimo de princípios sobre a qual ela pode ser construída. Sem ingenuidade, mas também sem sectarismo. Aceitando a diferença, e não cortando amarras no que é essencial e pode unir. Com uma urgência que é ao mesmo tempo um imperativo ético, pois é isso que esperam muitos dos eleitores que requerem explicações, exigem mudanças na atitude e não querem esperar pela Convenção diferida para Novembro para as poderem vislumbrar. Isso, essa ligação dinâmica, faz-se com pessoas e organizações concretas, articulando vontades e convicções que possuem rostos. Agindo com essa «transparência definitiva» sobre a qual um dia escreveu Camus. Não se consegue com declarações de intenção vagas, por isso opacas, que a ninguém mobilizam. Nem com adiamentos que poucos entendem.