O conflito israelo-palestiniano é talvez o tema de política internacional que maiores clivagens cria na opinião pública. Ao ponto de toldar pessoas habitualmente razoáveis ou de incompatibilizar outras que pouco antes partilhavam opiniões próximas sobre numerosos assuntos. E isto acontece há décadas. Pelo menos desde as rápidas mas brutais guerras dos Seis Dias (1967) e do Yom Kippur (1973), quando os mais duros dos duros militares israelitas, comandados no terreno por homens como Moshe Dayan ou Ariel Sharon, tomaram conta de Israel, ampliando a ocupação sionista do território da Palestina e deitando por terra qualquer possibilidade de um entendimento com a antiga OLP. A sua atitude de impiedade e conquista favoreceu, ao mesmo tempo, o crescimento de setores palestinianos radicalizados que excluíam qualquer acordo, presente ou futuro, com Tel Aviv. A partir dessa altura, a paz transformou-se numa miragem. E o sofrimento, sobretudo o dos mais fracos e desprotegidos, não mais parou, regressando periodicamente aos paroxismos de violência e assassinato em massa como aqueles a que estamos a assistir.
Pode dizer-se, em abono das posições extremas e de ódio ao ódio, que perante o horror dos bombardeamentos indiscriminados que o exército de Israel está a lançar sobre a Faixa de Gaza, existem limites da desumanidade que requerem atitudes imediatas e frontais, sem panos quentes, de repúdio público e busca de uma solução rápida e eficaz. Estou de acordo com este princípio e por isso defendo que a primeira medida, uma medida mínima, implica a forte condenação internacional do governo de Israel, o seu isolamento, pela política de genocídio que, em nome do combate ao extremismo do Hamas, está a levar a cabo sobre uma população indefesa e sem possibilidade de escape. Colocada até, em alguns casos, entre dois fogos. Mas tal não pode implicar um encolher de ombros por parte dessas mesmas pessoas diante dos assassinatos em massa que ainda há poucas semanas tinham lugar na Síria, e em relação aos quais a «capacidade de indignação» referente à existência de alvos humanos civis se não fez sentir de qualquer forma. A dualidade de critérios apenas se entende dado quem a pratica não colocar o valor da vida humana no centro das suas preocupações, aceitando a possibilidade de existirem atrocidades más e outras «boas», consoante o lado que as aplica ou a teia de interesses políticos que as condiciona. Desta forma, a sua indignação, por muito justa que possa ser, e neste caso é-o, perde força e autoridade moral.
Nestes termos, é fácil cair em armadilhas, confundindo o odioso da intervenção comandada a partir de Tel Aviv com uma espécie de essência maléfica da generalidade dos israelitas diante da qual qualquer outro comportamento, como o aplicado pelo Hamas – que sabemos só não ser de idêntico calibre dada a desproporção da força militar disponível e que, como também é sabido, não representa, nem de longe, a generalidade dos palestinianos – surge como quase benévolo. Não sei a quem serve, que não a um prazer mórbido em distorcer as razões do ódio, inventar histórias como a dos israelitas que assistem aos bombardeamentos como a um espetáculo – Franco serviu-se da mesma invenção em 1936, quando dos 70 dias de bombardeamento republicano sobre o Alcázar de Toledo – ou a da deputada do Knessett que exigia que «todas as mães palestinianas sejam executadas», dado que jornal credível ou agência de informação alguma divulgou tal «notícia». Estes exemplos são extremos, bem sei, mas são elucidativos a respeito da forma como a defesa irracional de uma causa pode causar danos. Em primeiro lugar, à própria causa, que nada ganha com tais invenções. Mas também ao seu sentido da luta pela justiça, que deixa de ser contra o governo israelita e os setores do centro e da direita que o apoiam, aplicando-se a todos os cidadãos de Israel, muitos dos quais se têm erguido, entre grandes perseguições, contra a guerra em curso e por uma solução pacífica do conflito. Os portugueses que viveram parte das suas vidas do lado da luta contra o regime ou no exílio recordarão como eram internacionalmente culpabilizados e apodado de «fascistas» pelos crimes da Guerra Colonial.
De facto, qualquer pessoa avisada, justa, e com um sentido da história que ultrapasse o que pode divisar-se apenas a dois palmos do seu nariz, sabe que o fim do conflito no Médio Oriente e do confronto israelo-palestiniano passará sempre, mais tarde ou mais cedo, por uma solução de compromisso, com responsabilidades repartidas. Esta solução implicará dois Estados lado a lado, numa base de igualdade e tendo Jerusalém como capital partilhada; a esta separação pacificada estariam associadas reparações financeiras e morais para os refugiados palestinianos, com possibilidade de viverem no seu estado independente ou de poderem regressar às suas terras de origem. Outra solução, minoritária mas também apoiada por muita gente que quer a paz – assim a pensaram intelectuais como o israelita Amos Oz ou o palestiniano Edward Saïd –, passaria por um único Estado com direitos iguais para todas as religiões e povos que vivam no seu território. Em qualquer caso, o governo israelita teria de ceder, passando a respeitar os direitos dos palestinianos e a legalidade internacional, só assim deixando de ser tratado como um governo pária. Tal como os setores extremistas e fanatizados do Hamas deveriam ser limitados no seu desejo expresso de expulsar todos os judeus da Palestina, o que, para além de historicamente injusto, ao criar, a acontecer, um novo problema humano, será sempre política e militarmente impossível.
Claro que para se chegar a essa situação permanece quase tudo por fazer – ao fim de todas estas décadas, quase estamos de novo na estaca zero –, a começar pela necessidade absoluta de palestinianos e israelitas serem capazes de afastar das suas lideranças e das suas alianças de circunstância aqueles que, em nome de projetos imperiais ou de fidelidade a um deus superior, tudo fazem para impedir uma solução de aproximação que não se traduza na anulação impiedosa do outro. Mas será esse o primeiro passo para que se torne possível começar a lamber as feridas e iniciar a via longa e dolorosa do tratamento de ódios tão profundos quanto compreensíveis. Percebendo-se que a luta não é, as palavras são de Oz, «entre quem tem razão e quem tem razão», entre os assassinos sionistas e os algozes islamitas, entre quem sustenta um estado confessional fundado na força das armas ou outro nas mesmas condições, mas contra os setores que se aplicam todos os dias em impedir um estado de paz, de desenvolvimento e de democracia para a região e para os seus povos. Produzindo ondas de choque que chegam às nossas casas. Um dia elas irão desvanecer-se, como esperamos, mas não será a cegueira a consegui-lo.
Rui Bebiano
Fotografia: Jaafar Ashtiye/AFP