Não sou militante, simpatizante ou sequer eleitor do Partido Socialista. Vejo aliás de um modo muito crítico o processo de progressiva desvitalização política que, durante a maior parte do tempo, o tem caracterizado ao longo das últimas décadas. Um processo vinculado ao abandono dos fundamentos mais essenciais da tradição social-democrata de esquerda, hoje já só formalmente inscritos na sua matriz e invocados como uma flor na lapela. Estes têm sido trocados por uma política estritamente pragmática, feita mais de interesses que de causas, mais preocupada com medidas do que com metas, na qual tantas vezes têm pesado sobretudo a influência pessoal, os grupos de pressão e, a estes ligados, os jogos de bastidores. Desta forma, têm sido recorrentemente remetidas para um plano secundário a dinâmica democrática, que foi fundadora do partido, e a força criadora das convicções e dos projetos de inspiração social. Este panorama não pode ser associado a toda a vida e a todos os militantes do PS, seria injusto e impreciso fazê-lo, mas corresponde à tendência predominante.
Todavia, não posso ser indiferente à vida interna do partido, pois, queira-se ou não, goste-se ou não da ideia, nele reside ainda a esperança de muitos portugueses, nele militam muitas pessoas genuinamente empenhadas na coisa pública e no coletivo, e, acima de tudo, por ele passa nesta altura a única alternativa realizável ao governo de destruição da democracia, do Estado social e da vida da maioria das pessoas que nos coube nesta legislatura. Politicamente à esquerda do PS, sou todos os dias confrontado com a inexistência no meu campo político de propostas que sejam verdadeiramente capazes de ultrapassar o mero estado de protesto e estejam em condições de produzir uma solução de governabilidade capaz de mobilizar a maioria dos cidadãos eleitores para uma alternativa real ao atual modelo de desenvolvimento. Elas fazem falta, muita falta. Mas aquelas que o Partido Socialista tem apresentado também não me agradam.
Esta declaração de interesses implica um olhar sobre a crise interna que o partido atravessa. Não considero que, por um passe de mágica, a troca de António José Seguro por António Costa transforme o PS numa associação de anjos que nos retire de um dia para o outro do pesadelo no qual mergulhámos. Mais: sei perfeitamente que este último tem agregado à sua volta, para além da maioria dos setores mais dinâmicos e com maior experiência política do partido, para além de muitos cidadãos eleitores a quem a sua personalidade mais aberta e o seu discurso menos rígido e preso ao jargão suscitam alguma empatia, também figuras de cera, algumas delas bem pouco confiáveis, às quais, para ser sincero, jamais emprestaria sequer a chave do meu carro. Mas não antevejo uma saída que não passe – não só, mas também – por uma redefinição dos compromissos dos socialistas, necessariamente associados às expectativas de quem os elege. O PS não «é» a democracia, mas pode fazer mais parte das suas soluções do que dos problemas que esta enfrenta.
É neste contexto que vejo como muito negativa a expulsão de militantes do PS de Coimbra, alguns com provas dadas no seu trabalho político e profissional, pelo «crime» de terem integrado ou apoiado, nas últimas autárquicas, as candidaturas independentes dos Cidadãos por Coimbra. Tal não faz sentido pela própria tradição plural do partido, que sempre conviveu com minorias. Como exemplo mais próximo, a candidatura presidencial de Manuel Alegre, em 2011, fez-se em discordância com a candidatura oficial do partido, protagonizada por Mário Soares, e tal não levantou problemas de idêntica natureza. Além disso, as listas dos CPC procuraram desde o início um acordo com a organização local do PCP e com a direção concelhia do PS e foi esta, ou foram estas, a recusar essa possibilidade. Mas excluir militantes no preciso momento em que se apela a uma abertura à sociedade e à aproximação de simpatizantes – que paradoxalmente até podem ser próximos, ou mesmo militantes, de outros partidos – é qualquer coisa de inexplicável e que só pode suscitar desconfiança. Um problema político, e também de ética democrática, que precisa ser resolvido.
O verão de 2014 está a ser bastante conturbado para o Partido Socialista. E a tendência é para piorar. Esperando, no entanto, que tudo se resolva a tempo de evitar que a direita que temos vença de novo as eleições e continue o seu trabalho miserável por falta de comparência do adversário.
Crónica publicada no Diário As Beiras. Versão ampliada.