Duas circunstâncias parecem condicionar o futuro próximo do Partido Socialista. A primeira diz respeito ao significativo número de cidadãos inscritos como militantes ou simpatizantes que estão em condições de votar nas primárias do dia 28 de Setembro. Perto de 250.000, tendo em conta que apenas 90.000 militam no partido, está de facto muito acima daquilo que seria concebível no início do verão. A segunda circunstância refere-se à forma como, independentemente do resultado, da liderança escolhida ou da definição programática que venha a afirmar-se, tem vindo a ficar claro que o PS jamais voltará a ser o mesmo. Está comprometida, talvez irremediavelmente, uma tradição de unidade que sempre foi harmonizando diferentes sensibilidades e expectativas. Bastaria aliás esta situação para que os partidos à esquerda dos socialistas assumissem o dever de ser mais prudentes nas infundadas certezas que parecem ter a propósito do que irá acontecer num futuro próximo.
Comece-se então por olhar o número de votantes nas primárias. Num país no qual o grau de politização da larga maioria dos eleitores e o peso de uma opinião pública substantiva são bastante frágeis, uma tal afluência torna-se um pouco estranha e suscita algumas dúvidas. Pode existir uma leitura otimista, tomando-a como resultado de uma súbita vaga de mobilização e esperança em relação ao papel que o PS pode ter na superação do desgraçado caminho que temos trilhado. Mas é legítimo projetar também um panorama negativo: nada garante que esse número não seja inflacionado por uma arregimentação de votos associada a fidelidades pessoais e a interesses instalados, tal como nada garante que não existam «simpatizantes» inscritos, provenientes de outros quadrantes políticos, empenhados em forçar a vitória do candidato com menores hipóteses de obter nas próximas eleições uma clara maioria socialista. Uma hipótese, fundada na observação empírica e em antecedentes históricos, que terá tanto de possível quanto de improvável, mas que não deve ser excluída.
Já quanto ao facto do impacto destas primárias marcar bem mais do que a definição imediata do rosto principal e da orientação do partido para as próximas legislativas, tal resulta evidente até da mais distraída das observações. É verdade que, dos dois lados em contenda, existe muita gente que sempre se manterá em silêncio e seguirá mais ou menos disciplinadamente o lado vencedor, seja ele qual for. Algumas das figuras que apoiam Costa ou Seguro representam um mesmo caldo de cultura, assente no carreirismo individual, na cedência aos interesses do mundo dos negócios e na descaracterização ideológica, que tanto tem maculado o partido. Mas torna-se claro que em cada um dos setores em disputa se agrupam pessoas com um discurso, uma atitude, uma ligação à realidade do país, um perfil ético e cultural, que conflituam entre si, exprimindo discursos, sensibilidades, escolhas e modos de agir bastante diferentes. O confronto tem sido muito mais brutal do que seria de supor e quando forem contados os votos, se a diferença não for muito grande – e por certo não o irá ser – tornar-se-á muito difícil levar a cabo um processo de pacificação interna. O que daí poderá resultar todos podemos conjeturar mas ninguém está em condições de saber.
É neste contexto que se torna inadequada, e politicamente perigosa, a posição assumida, mais à esquerda, pelo Partido Comunista e pelo Bloco de Esquerda. A recusa liminar, pelo PCP, em assumir qualquer compromisso com um PS insuscetível de integrar o «governo patriótico e de esquerda» que proclama, ou a imposição pelo Bloco de pautar qualquer eventual aproximação pela aceitação pelos socialistas dos seus próprios princípios, esquecendo que toda a negociação se faz de vontade de negociar e de cedências, têm como denominador comum a recusa em reconhecer que existem diferenças entre os setores que disputam neste momento a sua direção. Existe, além disso, um fechar de olhos ao facto destes admitirem agora, pela primeira vez, alguma abertura à esquerda, o que, a ser recusado, acabará por ser mal compreendido aos olhos do eleitorado flutuante.
Não se trata, naturalmente, de propor a comunistas e a bloquistas que abdiquem dos seus próprios princípios políticos e da sua identidade, nem sequer de escamotear as enormes diferenças que os separam dos socialistas, nem de ser-se ingénuo e esperar que o PS se transforme de repente num partido de anjos, mas sim da recusa, nas dramáticas condições em que o país se encontra, de discutir sequer a possibilidade de um entendimento mínimo que possa erguer – ou não, pois aprende-se a caminhar caminhando – uma alternativa à política de empobrecimento, de submissão à lógica dos mercados e de destruição do Estado social que a presente maioria está a impor ao país. Sem o PS, queira-se ou não, não existe nesta altura, salvo se uma crise ainda mais brutal exacerbar as contradições, uma alternativa de governo que possa resultar de eleições democráticas. Trancar as portas à possibilidade de um entendimento, por mínimo que seja, em nome de uma suposta coerência, é um passo enorme para nada resolver e impedir a construção de uma solução de governabilidade que devolva ânimo aos portugueses e os salve do abismo.
No final deste ano, com as transformações que necessariamente ocorrerão num PS provavelmente mais aberto – se à esquerda, se ao centro, tal dependerá das dinâmicas que cada um aplicar no terreno – e num BE infelizmente (mas previsivelmente também) mais irredutível e prestes a ser atraído pela força gravitacional do seu concorrente direto, com a muito possível emergência de uma corrente à esquerda que se defina como mais aberta ao debate, com as ondas de choque impostas pelo perigoso ascenso de algumas correntes populistas, deixará de ser possível, salvo para quem tenha perdido de todo o sentido da realidade, continuar a aceitar que o combate contra a direita será feito apenas em trincheiras separadas. Quero acreditar que uma parte importante do «povo de esquerda», que inclui a maioria dos militantes socialistas, e dos numerosos eleitores sem partido, perceberá isso também. Oxalá.