Tenho bastantes reservas em relação à institucionalização das chamadas primárias partidárias. Defendo a redução da super-máquina burocrática e profissionalizada que tolhe os partidos, concordo que estes devam abrir-se mais à sociedade, saindo do espaço tantas vezes insalubre das sedes e dos corredores do poder, e acredito que, no seu funcionamento, o confronto com a participação informal dos cidadãos possa promover um revigoramento das ideias, das propostas e das práticas. Tenho ainda a certeza de que, para cumprir o seu papel e estar mais próxima das pessoas, a democracia não pode esgotar-se no sistema representativo e na exclusiva intervenção dos partidos políticos.
Continua no entanto a parecer-me que, em condições normais, as grandes decisões que estes tomam devam caber em primeiro lugar aos seus próprios militantes. Àqueles que participam regularmente na sua vida, que dão a cara, que pagam as quotas, que perdem noites em reuniões, que debatem e ajudam a tomar decisões, que vão para a rua, chova ou faça sol, a propagar as suas convicções, e não a pessoas que, de uma forma quase anónima, num repente, vindas sabe-se lá de onde, emergem do seu próprio silêncio e se sobrepõem à vontade de quem ao longo de anos de facto se empenhou. É justa e mais verdadeira essa primazia.
Mas por vezes há males que vêm por bem e, desta vez em condições anormais, um processo essencialmente imperfeito parece ter conduzido, no Partido Socialista, a um resultado interessante. Com a vontade de muitos dos seus militantes e a mobilização de um bom número de cidadãos que se assumiram como simpatizantes, o PS parece ter-se libertado, pelo menos momentaneamente, dos setores mais cinzentos, politicamente desvitalizados e distantes da sua matriz ideológica original ou da sua principal base social. A viragem terá devolvido assim alguma esperança a muitos portugueses que nele confiam como partido do centro-esquerda vocacionado para governar.
No entanto não sou inocente e sei que não terá sido por um passe de mágica que deixou de incorporar posições contraditórias e personalidades pouco abonáveis, tantas vezes mais próximas de redes clientelares e da cedência à «política dos interesses» que de um programa mobilizador. Não sendo o PS a minha praia política, quero porém acreditar que comporta agora uma maior vontade de diálogo na busca de uma solução para afastar a direita do governo e, pelo menos, tentar inverter a atual situação de calamidade pública. Ninguém no seu perfeito juízo passa cheques em branco a quem não provou ainda merecer essa confiança, e eu não sou exceção, mas também não rejeito a priori o seu contributo. Por isso não concordo com quem o exclui liminarmente do seu calendário político e tudo faz para o empurrar para a direita. Perante tal cegueira, esta só pode ficar agradecida.
Crónica publicada no Diário As Beiras