Podemos sempre encontrar, num momento recuado das nossas vidas, a projeção de uma profissão a exercer naquele futuro distante ao qual chegaríamos invencíveis e adultos. Dessa fase dos destinos improváveis lembro-me apenas de querer imitar David Crockett, o explorador do Tennessee, insuperável no manejamento do rifle e na caça ao urso. Mas recordo também o desejo de um dia me tornar jornalista. Em parte por causa dos meus heróis da banda desenhada que o eram também, como Luís Euripo ou Tintim. Mas sobretudo devido à influência dos jornais com os quais apreendi a ler: o Diário de Notícias, do qual o meu avô era «agente e correspondente», e O Primeiro de Janeiro, que ele comprava aos domingos e lia de uma ponta à outra totalmente alheado das rotinas da casa. Imerso nas suas páginas sempre renovadas, na aparência infinitas, passei a associar o trabalho daqueles que os faziam a um imaginário de viagem que me atraía e a uma vida que julgava isenta de rotinas.
Com o tempo, a presunção juvenil desse destino de risco e evasão foi dando lugar a outra, talvez um pouco mais consistente. A de serem os jornais lugares de aprendizagem do mundo e de resistência à monotonia própria de sociedades imóveis e bloqueadas, como a do país emudecido e provinciano em que nascera. E de se constituírem como boas pistas de treino da língua, do conhecimento e da reflexão. Os jornalistas pareciam-me agora, invariavelmente, sábios, pedagogos ou homens de ação (por essa altura, recorde-se, eram raríssimas as mulheres que trabalhavam na profissão). Por vezes surgiam-me, sem exagero, como semideuses, fazendo do seu trabalho um teatro da vontade e da coragem. Mesmo aqueles que tinham um perfil menos rebelde eram quase sempre pessoas de leituras, gente com interesses e convicções, domadora de frases arrojadas e originais que mereciam sempre ser lidas. Quando passei a escrever em jornais e conheci algumas delas, nada me fez mudar de opinião.
Ora são justamente esses jornalistas, representantes dessa espécie gente rara e indispensável para uma educação completa do humano e para a dinâmica da coisa pública, que a atual lógica da comunicação, ao serviço dos interesses instalados, voltada para um público olhado como passivo consumidor e não como instrumento de uma sociedade atenta e informada, tem vindo a afastar dos espaços onde cada vez menos os podemos ver, ler ou ouvir. Dispensados e substituídos quase sempre por amanuenses precários e baratos, agentes comunicadores que conhecem as tecnologias mas são incapazes de pensar de uma forma autónoma, crítica e culta. Ou que, sabendo fazê-lo, são impedidos pelas chefias de exercer essa dimensão da sua e da nossa liberdade. Se nada mudar rapidamente, é provável que dentro de não muito tempo deixe de ser possível despertar em alguém aquele antigo desejo de assumir o jornalismo como uma atividade socialmente útil e respeitada, escolhida por um sentido de missão e para a vida inteira. Tudo trocado por trabalho sem brilho ou glória, frágil oportunidade para uns quantos chegarem às migalhas que o poder e o dinheiro concedem.
Versão revista da crónica publicada no Diário As Beiras.