Esta semana a Universidade de Coimbra e a Fundação Cuidar O Futuro assinaram o termo de doação que transferiu para o Centro de Documentação 25 de Abril a responsabilidade de guardar, tratar e disponibilizar de forma pública o importante arquivo político e pessoal de Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004). São cerca de 250.000 documentos de uma tipologia muito diversa que dão conta de um trajeto à escala nacional absolutamente singular. Um trajeto que ao longo de décadas se fundiu com a história recente de Portugal, testemunhando experiências que deixaram um lastro inapagável, nas instituições mas sobretudo nas pessoas que nelas participaram ou a elas assistiram, e que merecem ser conhecidas e estudadas.
Foi uma vida bem preenchida a de Lourdes Pintasilgo. Revelada nas marcas que foi deixando de uma intervenção sempre destacada em atividades tão diversas como a militância na Juventude Universitária Católica, no Movimento Internacional de Intelectuais Católicos Pax Romana e no Graal (que em 1957 introduziu em Portugal), o trabalho na criação da Comissão para a Política Social Relativa à Mulher (mais tarde Comissão da Condição Feminina e hoje Comissão para a Igualdade de Género), a vida profissional como engenheira na Junta de Energia Nuclear, a intervenção que teve na Câmara Corporativa e, após o 25 de Abril, como titular do Ministério dos Assuntos Sociais dos II e III Governos Provisórios, como Primeira-Ministra do V Governo Constitucional em 1979 (a única mulher até hoje a ocupar o cargo), como Candidata à Presidência da República nas disputadas eleições de 1986, como dinamizadora do Movimento para o Aprofundamento da Democracia, como Embaixadora de Portugal junto da UNESCO ou como membro do Parlamento Europeu entre 1986 a 1989.
Tratou-se de um percurso incomum porque conduzido com independência e tenacidade, tendo como marca, permanente e sempre visível, a procura empenhada de processos de transformação do país e do mundo orientados para o aprofundamento da liberdade e da democracia, e empenhados na afirmação da solidariedade e do bem-estar. Uma procura construída do lado de fora da atividade partidária e com a ênfase no papel das mulheres na atividade social e na política. Terão sido aliás estas escolhas a determinar a progressiva ostracização da vida pública da qual foi alvo nos anos que de mais perto antecederam a sua morte. Numa altura em que o sistema democrático assentava em exclusivo na atividade triunfante dos partidos e era ainda comum uma subalternização da presença feminina nos lugares de decisão, o seu exemplo na busca de vias alternativas ou complementares surgia como incómodo. Porém, tal jamais significou uma desistência, como o provam as largas dezenas de artigos e comunicações públicas nas quais, sob renovadas condições, nessa fase descendente da vida pessoal Lourdes Pintasilgo continuou a defender os seus ideais de sempre.
A salvaguarda do seu legado material nos arquivos do Centro de Documentação 25 de Abril, facilitada com a transferência, prevista para o início de 2015, para as novas e modernizadas instalações do Colégio da Graça, contribui para projetar o exemplo de uma mulher e de uma cidadã cuja vida não pode ser descurada pelos portugueses com memória e sentido de gratidão. Em especial nestes tempos difíceis, nos quais tudo parece pautar-se pela estrita e tantas vezes mesquinha contabilidade do deve e do haver, colocando o sentido do humano em plano secundário. Para tempos assim deixou Maria de Lourdes Pintasilgo palavras que permanecem tão duramente atuais quanto pautadas por essa forte dose esperança que jamais perdeu. Na conferência «Ética, Cidadania e Política», com a qual em 2002 encerrou um seminário que decorreu no Instituto Superior Técnico, afirmou: «É a pessoa humana a primeira e a última finalidade de toda a decisão política. Transformá-la num instrumento de objetivos científicos, económicos ou financeiros é quebrar o esteio da política e da cidadania que reside no caráter inviolável da dignidade humana. Nela tudo nasce e para ela tudo se deve encaminhar». Uma verdade conveniente.
Versão ampliada da crónica publicada no Diário As Beiras.