Para Albert Camus, a humanidade do indivíduo afere-se, em boa parte, pela sua capacidade de se rebelar contra o mundo, o seu e o dos outros, tal como ele se apresenta. Escapando por essa forma à lógica do rebanho, que não deixa margem para o exercício da liberdade e do compromisso. Todavia, o gesto de revolta apenas liberta enquanto não se volta contra quem o pratica. Em O Homem Revoltado, de 1951, o livro que esteve na origem da sua rutura com Sartre e do conflito que manteve até ao final da vida com a ortodoxia de esquerda e os seus compagnons de route, o escritor ergueu-se ao mesmo tempo contra uma «revolta poética», meramente verbal, formal, imaginada, que não passa de um diferimento por via simbólica ou onírica da verdadeira insubmissão, e contra uma «revolta histórica», que remete para amanhãs distantes, situados num futuro concebido como totalmente perfeito e harmónico. Este caminho consagraria uma ideia de revolução que, ao diluir a intervenção humana num processo histórico que a deve transcender, tornar-se-á inevitavelmente escravizante.
Valorizando a revolta em detrimento da revolução, Camus sublinhou então que, se o revolucionário «é ao mesmo tempo um revoltado, pois de outra forma não seria revolucionário», pode também ser «um polícia e um funcionário que se levanta contra a própria revolta», retirando-lhe a humanidade em nome de um coletivo que, por excluir a diferença, não é verdadeiramente humano. Todavia, se for de facto um insubmisso, incapaz de aceitar uma estabilidade olhada como a ordem natural das coisas, o revolucionário «acabará por voltar-se contra a revolução» que ajudou a erguer, tornando-se então «ou opressor, ou herético». Podemos deste modo compreender, a título de exemplo, o trajeto intensamente dramático dos largos milhares de revolucionários russos, muitos deles fundadores e membros destacados do partido bolchevique, que nos anos 30 e 40, não aceitando ser transformados em agentes de uma opressão que não haviam previsto ou desejado, foram cilindrados pela revolução que tinham ajudado a construir. Enquanto outros, anulando a sua própria liberdade em nome do que consideravam uma inevitabilidade histórica que transcendia a livre escolha, se tornavam seus fiéis agentes.
Esta lição da História deveria fazer pensar todos aqueles que, em tempos de calamidade como os que estamos a atravessar, excluem o compromisso que permita fazer-lhes frente ao verem-se como porta-vozes ou representantes de um «instante revolucionário» superior, que julgam capaz de se impor no presente e de preparar, com recurso a atitudes irredutíveis, a habitação utópica do futuro. Mas o ser humano «em estado de revolta», que pensa criticamente o mundo em que vive e não o aceita como ele é, apenas afirmará e justificará a sua capacidade para ser livre, e desse modo realmente humano, se souber, a cada momento e sempre no presente, pensar e agir sobre o real através de um encontro na constante diferença. Batendo-se por transformações sem esbater as discordâncias, por metas sem bloquear a sua revisão, tornando possível o aparentemente impossível e afastando da linha do horizonte o ameaçador espetro dos programas «de ciência certa» e do pensamento único. Prosaicamente, só assim faz sentido pensar de maneira participativa no futuro próximo do país Portugal, que em 2015 se verá numa das maiores e mais dramáticas encruzilhadas da sua longa vida ao ter de escolher, nas urnas, entre o lento e complexo caminho da recuperação de uma vida digna e a irreversível submersão na era das Trevas.
Versão ampliada da crónica publicada no Diário As Beiras.