Conto quatro Charlies em cada protesto de rua pelo ato terrorista de 7 de Janeiro. Podem responder à mesma convocatória, mas chegam de bairros diferentes e seguirão destinos que raramente se cruzam. Há um Charlie de extrema-direita, xenófobo, racista, islamofóbico, que vê no acontecimento um pretexto para atacar a democracia e envenenar a opinião pública com um discurso segregacionista sobre a imigração e a necessidade da força. Há depois um Charlie de colarinho branco, com o rosto do político insolentemente oportunista, sedento de protagonismo, que, como fez em Paris Nicolas Sarkozy, acotovela os outros para chegar à primeira fila e aparecer na fotografia. Há também um Charlie genuinamente indignado mas que desfila como mero figurante, vestindo a t-shirt do Charlie Hebdo porque «toda a gente» a veste. E há ainda um outro Charlie, pouco interessado na linha editorial ou no valor dos cartoons do semanário satírico parisiense, mas verdadeiramente apreensivo com o risco de um rápido recuo da liberdade de expressão e do direito à crítica e ao humor.
Desfilar ao lado deste Charlie não impõe, no entanto, a recusa de alguns dos argumentos daqueles que têm observado de forma crítica as grandes manifestações que tiveram lugar na semana do ataque. É verdade que muitos dos islamitas radicais são empurrados para o desespero e para a violência por uma vida à margem da dignidade. É verdade que em sociedades profundamente desiguais o rancor cresce com facilidade. É verdade que a memória do passado colonial e a ocupação imperial de territórios disputados alimenta uma cultura que combina o ódio com a resistência. É verdade que a cegueira da fé estimula uma incompreensão levada ao extremo, sem que tal seja um exclusivo do Islão. É verdade também que uma parte dos que vieram para a rua o fizeram na rejeição do imigrante, do desenraizado, do muçulmano. Mas nada disto pode justificar o questionamento ou a aceitação da irrelevância, seja em nome de que princípios for, da liberdade de expressão, do direito à crítica e dos fundamentos de uma sociedade laica, livre da coação do pensamento e da palavra. Eles resultaram de um longo e árduo combate, com os seus heróis e os seus mártires, inscrito no património emancipatório da esquerda, que não deve envergonhar aqueles que usufruem das suas conquistas. Um património que deve ser preservado do assalto do obscurantismo religioso, venha este de onde vier.
Como escreveu há alguns dias no diário Libération o jornalista e escritor italiano Roberto Saviano – autor de Gomorra, livro-denúncia das atividades da máfia napolitana que o têm forçado a viver sob escolta –, o ataque contra o Charlie Hebdo não foi lançado apenas contra as pessoas comuns e uma publicação de conteúdo reconhecidamente questionável. Não se tratou de uma iniciativa lançada contra um Estado ou um regime, mas antes contra um direito, um bem, uma conquista, que tem feito do «Ocidente», com todos os seus problemas, dificuldades e contradições, «uma terra ainda à parte» no que concerne ao exercício da liberdade de pensamento e de expressão. Não podemos por isso deixar cair esse direito. «Se não agirmos», diz Saviano, «o silêncio fará esse trabalho por nós». Se a mobilização das pessoas e das consciências que por estes dias sacudiu parte da «rua europeia» em prol do direito a uma imprensa livre como fundamento da democracia e de uma vida digna não ganhar consistência, se o desinteresse se instalar, passado o momento de indignação o medo irá impor a regra do silêncio, como aliás começa já a acontecer. Voltaremos a preocupar-nos apenas quando ocorrer o próximo atentado.
Versão ampliada da crónica publicada no Diário As Beiras.