Parte fundamental do património histórico e identitário da esquerda contemporânea, ou pelo menos de um segmento importante dela, tem vindo nos últimos tempos a ser esquecida, abandonada ou deixada em estado de hibernação por algumas das organizações políticas e dos movimentos de cidadãos que se consideram herdeiras de pleno direito do seu legado global. Ao longo de mais de século e meio de uma vida complexa, e a par da preocupação com a justiça social, muitos dos seus combates mais importantes e difíceis foram de facto travados em favor de uma democracia vivida sem restrições, da mais completa liberdade de expressão e de opinião, dos direitos das mulheres, do respeito pelas minorias, de um ensino público, de uma política cultural do Estado e de uma civilidade absolutamente laicos, não-confessionais e ao dispor de todos.
Esses momentos de luta e as conquistas que traduziram foram, aliás, marcados pelo sacrifício e pela entrega de várias gerações de abnegados militantes e de anónimos cidadãos. Erguendo-se, nos mais diversos quadrantes, contra todas as formas de ditadura, de arbítrio e de opressão, contra a censura e a autocensura nos seus diferentes rostos, contra a segregação baseada na origem étnica ou na cor da pele, contra a desigualdade social em nome de uma qualquer tradição, contra a ignorância e o obscurantismo, contra o uso da religião como instrumento de ódio e de domínio, como «ópio do povo», tal como a definia Marx na conhecida passagem da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, publicada em 1844.
Todavia, quem observar com atenção o discurso, as escolhas programáticas e as tomadas de posição de alguns desses setores, constata que tais metas políticas estão por eles a ser desvalorizadas e empurradas para os arquivos de um passado aparentemente distante. Pior, em alguns casos as posições assumidas atestam até uma clara rutura com essa herança, num processo que, sem receio de exagero, pode ser considerado de ensombramento, de silenciamento ou mesmo de completa subversão, da uma tradição, de uma matriz ideológica e de uma identidade política e cultural olhada como caduca e ultrapassada.
São vários os sinais que, em nome de um suposto «aggiornamento» e de uma adaptação à realidade objetiva, indiciam essa traição. Desde logo respondendo aos limites e à crise da democracia representativa com a sua desvalorização e não com a sua reforma, usando o vínculo a dada altura estabelecido entre as direções de muitos partidos socialistas e trabalhistas e a sua aceitação do modelo neoliberal para os desqualificar de um modo liminar, mesmo em momentos críticos, como possíveis aliados, e esquecendo de todo a antiga linhagem libertária partilhada. Mas também estendendo a defesa de um relativismo político e cultural incontido capaz, em nome da recusa de uma mundivisão etnocêntrica, de aceitar sem grandes reservas práticas, sociedades e poderes marcados pelo autoritarismo, pela romoção da desigualdade e pelo mais abjeto esmagamento dos direitos humanos.
A própria importância atribuída à antiga tradição internacionalista tem vindo a ser preterida em favor de causas seletivas, centradas no combate a «inimigos globais» como os Estados Unidos ou Israel, mas deixando de lado a intervenção brutal e igualmente perigosa de Estados autoritários, centralistas e expansionistas como a Rússia ou a China. E manifestando, em consequência, um quase alheamento por aquilo que ocorre em situações particularmente críticas, em territórios envolvidos em conflitos brutais, como aqueles que acontecem neste momento na Síria, na Ucrânia ou na Nigéria. Salva-se, quanto muito, alguma atenção perante o drama palestiniano e, neste momento, também diante da crise grega. Mas é pouco, muito pouco.
Esta despromoção de um interesse emepenhado e sem qualquer descriminação pelas diferentes dimensões da emancipação humana, por longos anos na linha da frente dos objetivos políticos de uma esquerda plural, possui tanto de incompreensível quanto de indefensável. Ela precisa ser rapidamente invertida, sob pena da antiga vocação emancipatória poder, por omissão, ser perdida, subvertida ou deixada nas mãos da direita mais abjetamente manipuladora e populista. Oportunisticamente metamorfoseada, como aconteceu agora com o caso Charlie Hebdo, em suposta defensora da paz, da liberdade e dos direitos humanos. Se essa inversão não acontecer, esta agradecerá.
Versão ligeiramente ampliada da crónica publicada no Diário As Beiras.