Em 1957, durante a conferência de imprensa realizada em Estocolmo quando da entrega do Nobel da Literatura, Albert Camus foi interpelado por um estudante sobre as condições em que, no contexto da guerra da independência argelina, então decorria, com episódios de violência extrema de parte a parte, a chamada «batalha de Argel». Tinha acabado de saber da explosão de uma bomba da responsabilidade da Frente de Libertação Nacional que havia provocado dezenas de mortos civis, entre europeus e árabes, ocorrida num mercado da capital da então colónia francesa habitualmente frequentado pela sua mãe. Camus respondeu assim: «Sempre condenei o terror. Por isso devo condenar também o terrorismo cego que está a ocorrer nas ruas de Argel (…). Acredito na justiça, mas defenderei a minha mãe antes de defender a justiça.» Coerente com a ideia que de há muito vinha propondo de forma pública, segundo a qual, no que concerne à condição humana, não existem uma moral e uma justiça adjetivadas, aceitáveis para alguns mas não para outros, o escritor defendeu que ambas integram sempre valores partilhados. Destinados a equilibrar as relações humanas e não a cavar distâncias intransponíveis.
Camus distinguia com grande clareza o terrorismo revolucionário do terrorismo de Estado, no entanto cedo pressentiu que muito facilmente poderia passar-se de um para o outro. Na sequência da publicação de O Homem Revoltado, que em 1951 já o havia incompatibilizado com o seu velho parceiro e amigo Jean-Paul Sartre por nele rejeitar a desresponsabilização do indivíduo e a sacralização do coletivo («que pode servir para tudo, até para transformar os assassinos em juízes»), a resposta dada em Estocolmo acabaria por custar-lhe a mais completa ostracização por uma parte da esquerda francesa, que o acusou de com aquelas palavras defender o colonialismo. Flagelo que tanto combatera, afinal, ao ponto de em pleno conflito se deslocar a Argel para defrontar uma plateia, essencialmente composta por europeus, assustadoramente hostil perante as suas palavras apaziguadoras. Mas a razão e a presciência estavam do seu lado.
A propósito do episódio, revi recentemente A Batalha de Argel, o filme italo-argelino realizado por Gillo Pontecorvo, estreado em 1966, que tão mencionado tem sido por estes dias para justificar, a propósito dos recentes atentados dos islamitas radicais, uma certa «violência dos justos». Aquela que visa transformar homicidas a sangue-frio em mártires e heróis, ou que procura explicar os seus tão lastimáveis quanto compreensíveis «excessos». Trata-se de um belo filme, com sequências de grande impacto estético, valor documental intrínseco e uma intensidade emotiva associados ao facto da narrativa se referir a acontecimentos então ainda muito próximos. Todavia, tudo ali é filmado a dois tons, o preto no branco, os bons contra os maus num registo apologético, sendo provavelmente esta simplicidade que tanto agrada a algumas consciências capazes de retomar a defesa das práticas contra as quais Camus se insurgiu vai para sessenta anos.
Quem conhece um pouco da história da independência argelina sabe que por aqueles lados as coisas jamais foram simples. Sabe que muitos europeus, como o autor de A Queda, apoiaram no essencial a sua justeza. Saberá também que, entre os próprios independentistas, ocorreram combates de grande violência. Alguns deles logo após o fim da presença colonial francesa. Na verdade, a violência indiscriminada, mesmo quando julgada necessária ou inevitável, tinge as mãos de sangue e contamina tudo o que por ela é tocado, impedindo por muito tempo tanto a pacificação das consciências quanto entendimentos necessários e historicamente inevitáveis. Devemos lembrar-nos mais vezes disso antes de aceitarmos «compreender» ou «explicar» a legitimidade do terror.
A 31 de Março, pelas 21 horas, no âmbito do ciclo «Vale a pena falar ainda da Guerra Colonial?», incluído na programação da 17ª Semana Cultural – 725 anos da UC, o Centro de Documentação 25 de Abril, em parceria com A Escola da Noite, levará a cabo no Teatro da Cerca de São Bernardo uma projeção comentada do filme de Gillo Pontecorvo referido nesta crónica.
Crónica publicada no Diário As Beiras.