A minha mãe, que tinha boa memória e mais quarenta anos do que eu, contava muitas vezes episódios de uma juventude passada nas duas décadas que separaram as guerras mundiais. Mesmo pertencendo a uma família da classe média, viveu durante todo esse tempo em condições que impuseram uma existência austera, passada sem grandes festas ou luxos. O pão como base da alimentação (um hábito que conservou durante toda a vida), a sardinha partilhada (sempre lembrada por muitos da sua geração), uma dieta que deixava a carne apenas para os dias especiais, semanas praticamente sem domingos, trabalho constante distribuído pela lide da casa e pelos deveres da horta e do pomar. E roupa e sapatos que deviam durar anos, com viagens a pé para levar o almoço ao pai, meu avô, que nem por ter um trabalho administrativo razoavelmente pago se podia dar a despesas supérfluas.
Essa foi uma época cuja narrativa se tornou quase incompreensível para os seus filhos, e principalmente para os seus netos, habituados já a uma vida de razoável desafogo, com férias longas e despreocupadas, bifes de lombo, ténis de marca e direitos gradualmente adquiridos. Em idêntico sentido, ao recordar os tempos difíceis que vivera numa Inglaterra recém-devastada pela Segunda Grande Guerra, o historiador Tony Judt falava de como os seus filhos acreditavam, ao ouvir as suas histórias desses anos duros, que o pai vivera na pior pobreza: «Nada disso, corrigi-os, cresci apenas na austeridade.» Austeridade, sim, para a sua época, mas pobreza para o tempo bem menos árduo dos que vieram depois.
No entanto, a memória dessas experiências não pode servir para justificar o retrocesso, em termos de qualidade mais essencial da vida, que uma parte significativa da Europa, da qual Portugal tristemente faz parte, está agora a conhecer. E muito menos funcionará como exemplo de como as coisas devem ser, mostrando que afinal era, ou é, possível, quando não higiénico, sobreviver com muito pouco. Na realidade, o cenário negro que nos tem sido apresentado como modelo não resulta de uma necessidade temporária, imposta por uma catástrofe ou por uma crise passageira; é antes um padrão de vida, destinado a colocar as pessoas em segundo plano, privilegiando o crescimento económico apresentado como uma solução para os problemas que são de todos mas só resolverão as necessidades e as expectativas de uns quantos.
Dizem-nos, com tal proposta em mente, que não devemos gastar aquilo que não temos; o que é, obviamente, uma escolha de bom senso. Mas dizem-nos também que para o conseguirmos teremos de aceitar medidas que forçarão a maioria a viver por muitos anos na penúria e sem esperança. E isto é totalmente inaceitável. As vidas dos nossos pais e dos nossos avós não podem, sob este aspeto, ser apresentadas como exemplo, como um destino, como mapa para a viagem coletiva que temos de percorrer. Não podemos viver como pobres para provar que somos honrados e preparar um futuro que jamais conheceremos.
Crónica publicada no Diário As Beiras.