Veio há dias parar-me às mãos um ensaio do jurista francês Olivier Beauvallet sobre a vida e a obra de Raphael, ou Rafal, Lemkin (1900-1959). O nome deste advogado polaco de origem judia não me era totalmente estranho, mas confesso que jamais o seu trabalho me havia surgido como algo que justificasse uma atenção especial. Todavia, o conteúdo da obra veio provar-me a profunda injustiça que representa o desconhecimento quase generalizado da sua obra. De facto, Lemkin foi «apenas» o fundador do conceito de «crime bárbaro», que na qualidade de procurador público na Polónia apresentou em 1933 a um comité jurídico da Sociedade das Nações reunido em Madrid, associando-o à «destruição de uma nação ou de um grupo étnico» tomada como crime particularmente grave e forçosamente imputável.
Escusado será dizer que a iniciativa, associada à sua condição de judeu polaco, lhe causou graves problemas durante a década e meia de escuridão que se iria seguir. Não era aquele, evidentemente, o padrão de juízo com o qual os nazis ou aqueles que com eles contemporizavam pudessem conviver pacificamente. Lemkin começou por perder o cargo e, após ser ferido ao participar na defesa de Varsóvia perante o avanço das tropas alemãs, viu-se forçado a viajar clandestinamente para a Suécia, seguindo depois para os Estados Unidos. Entretanto quase toda a sua família havia perdido já a vida nos campos de concentração e extermínio. Já na América, foi em 1948 um dos impulsionadores, agora no âmbito das Nações Unidas, da Convenção para a Prevenção e o Castigo do Crime de Genocídio, um conceito que cunhara quatro anos antes, estabelecendo na altura um dos fundamentos jurídicos sobre os quais assentou o trabalho da acusação durante os julgamentos dos antigos dignitários nazis em Nuremberga.
Se é verdade que o padrão de prática que conseguiu criminalizar no domínio do direito internacional não desapareceu, e prosseguiu mesmo o seu caminho atroz após o fim da Segunda Guerra Mundial – a sanha dos que querem aniquilar povos inteiros, reforçada nos últimos tempos com a interferência mórbida do ódio religioso, continua, sabêmo-lo, a fazer muitos milhões de vítimas –, ficamos a dever a Lemkin a consideração, no campo da culpabilização pública e da sua penalização, dessa modalidade extrema de violência que durante uma grande parte da história humana, talvez mesmo a sua maior parte, tem ocorrido num registo de crua normalidade. Os criminosos genocidas podem perseverar na sua atividade desumana e letal, podem até escapar ao braço, nem sempre firme ou dotado dos necessários meios, dos tribunais internacionais que têm por missão julgá-los e condená-los, acabando por morrer livres e em lençóis lavados, mas jamais permanecerão moral e historicamente inimputáveis.
Publicado no Diário As Beiras.