Em entrevista saída no Público de 24 de Agosto, Dimitris Rapidis, analista do think tank Bridging Europe, de Atenas, constatava um facto: «é a primeira vez desde os anos 1970 que temos um ambiente político tão instável, volátil e frágil». Rapidis fazia também uma previsão com curta margem de risco: «mesmo depois destas eleições, a estabilidade política não vai voltar à Grécia». Ambos, facto e previsão, confirmam uma situação e uma expectativa conhecidas de quem da Grécia possui mais informação do que aquela que transparece dos soundbytes diários e de uns quantos artigos de economia condicionados pela crise e pelos seus reflexos nas estratégias de governação. Existe, de facto, uma realidade mais profunda, embora raramente abordada, sem a qual toda a análise ou tomada de posição sobre o presente e o futuro do Estado grego corre o risco de ficar incompleta.
Essa realidade começa por contrariar a falsa ideia de que a existência da Grécia é a de uma nação unitária, dotada de um percurso consistente através da História. Ao abordar esse trajeto na sua Histoire de la Grèce Moderne, que começa em 1828, com a emancipação perante o velho Império Otomano, e fecha em 2012, o historiador Nicolas Bloudanis define a ideia como um mito, procurando mostrar de que modo múltiplas clivagens foram mantendo a Grécia independente como um terreno instável e pesadamente minado. Terreno no qual, como foi acontecendo em grande parte da Europa central e oriental ao longo dos últimos dois séculos, qualquer passo em falso comporta fortes possibilidades de produzir consequências imprevisíveis e dramáticas. Não é preciso recuar ao início do século XIX, nem sequer entrar em grandes detalhes, para o compreendermos.
Basta recordar, recuando a bobina do tempo até à Segunda Guerra Mundial, os dramáticos episódios da ocupação, da resistência e da colaboração, envolvendo amplos setores políticos, ocorridos no contexto das invasões fascista e nazi, dos quais resultou cerca de 1 milhão de mortos, não contando com os deportados. Ou a brutal guerra civil vivida entre 1946 e 1949, provocando 150.000 vítimas e largas dezenas de milhar de refugiados, cuja memória permanece associada a ódios por resolver. Ou lembrar o período de grande instabilidade social e política que se lhe seguiu, retratado por Costa-Gavras no filme Z, que integrou o confronto com a Turquia em torno da disputa de Chipre. Ou a sangrenta «ditadura dos coronéis», que entre 1967 e 1974 encheu as prisões de militantes antifascistas. Ou ainda a sucessão de governos corruptos e de alianças improváveis, como aquela que em 1989 levou ao poder a Nova Democracia e o Partido Comunista (KKE). Para não falar do papel da omnipresente e retrógrada Igreja ortodoxa grega, do caráter estruturalmente conservador de amplos setores da população por ela influenciados, dos numerosos conflitos étnicos ou regionalistas, do enorme peso político das forças armadas, justificado com o perigo da «ameaça turca», da disseminação do crime económico que constitui desde há décadas uma prática endémica, da estrutura clientelar de grande parte dos partidos, particularmente notória até há dois anos no PASOK, ou do extremismo político, consubstanciado agora nas escolhas irredutíveis dos fascistas da Águia Dourada e, no polo oposto, dos ultraortodoxos do KKE, ambos com significativa representatividade eleitoral. Factos avulsos que sinalizam com clareza uma história recente atribulada, com sequelas nada apaziguadoras.
Este cenário complexo e algo negro, impossível de apagar no curto prazo através de uma intervenção meramente voluntarista imposta por um partido em condições de governar o país, condiciona inevitavelmente toda a experiência governativa, por mais renovadora, solidária e voltada para o futuro que esta pretenda ou possa ser. A Grécia permanece um barril de pólvora desde há largas décadas, colocado ademais numa área geoestratégica de potencial conflito, e esta realidade condiciona poderosamente as escolhas de todo o governante suficientemente sagaz para perceber que os velhos demónios da instabilidade, do autoritarismo e da guerra civil podem a todo o momento regressar.
Para além das escolhas discutíveis que terá feito, a primeira e breve experiência governativa do Syriza, e o ponto de bloqueio a que rapidamente chegou, devem também ser lidas neste contexto. Qualquer rutura – como a saída abrupta do euro e o regresso instantâneo a uma economia de natureza marcadamente soberanista, defendida agora pela Unidade Popular, resultante de uma cisão no Syriza – não pode ser ponderada sob a estrita pressão das circunstâncias, isto é, sem a projeção do complexo lastro histórico, associado ainda a uma memória partilhada muito vívida, que precedeu e acompanha a atualidade do país. Uma condição que não se compadece com atos voluntaristas, eventualmente bem-intencionados mas pesadamente marcados pela impaciência e pela ideologia. Fazer o contrário, ignorar o trajeto da Grécia nas últimas décadas, lançando-se numa fuga para a frente, será sempre um gesto de infantilismo político que comporta grandes e numerosos perigos. É fácil propô-la através da propaganda, ou defendê-la à distância de milhares de quilómetros, mas bem mais difícil levá-la até ao fim e impô-la à vida real das pessoas.