Toda a escolha política consistente, dotada de uma efetiva capacidade para intervir com consequências sobre a realidade, comporta uma relação com a ideologia e com o seu enquadramento sistémico, mas integra também uma inevitável articulação com as circunstâncias práticas e as decisões que sempre impõe a realidade da vida vivida. Pode compor explicações para o sentido tomado pela História, encarar grandes opções no que respeita aos caminhos que o mundo vai percorrendo, mas deve ao mesmo tempo, e de outro modo não faria sentido, tomar decisões determinadas pela mais objetiva e imediata necessidade.
Tomemos como exemplo o doloroso problema dos refugiados vindos da Síria, do Afeganistão, do Iraque, ou da África subsaariana, alguns à procura de uma vida melhor, mas a maioria essencialmente em busca de uma situação de paz, longe do espetro da guerra e das perseguições de origem política, étnica e religiosa. Podemos colocar a «questão» em termos genéricos: atribuir culpas a quem, direta ou indiretamente, provocou este drama (também, mas não apenas, à desastrada política externa do EUA), falar da falta de sensibilidade da maioria dos governos europeus para o problema (associada à inexistência de uma escolha política verdadeiramente europeia para o quer que seja) ou ainda reconhecer que existe muita gente que lucra com esta situação (quem ganha dinheiro com a venda de armas, com o transporte dos refugiados, com a mão-de-obra barata que sempre representa quem nada tem). Mas se ficamos pela «questão», que normalmente considera ser necessário atalhar às causas últimas, esperando pela sua solução para tomar outras medidas, vemo-nos na contingência de não resolver o «problema». Isto é, de desprezar as terríveis consequências para as pessoas que com risco da vida estão a atravessar o Mediterrâneo, o Egeu, os Balcãs e a Europa central, deixando-as entregues a si próprias, como párias e condenados.
Um outro exemplo da necessidade de combinar sempre os dois aspetos – «questão» e «problema» – pode encontrar-se na forma como, na Europa, e mais concretamente em países como a Grécia ou Portugal, alguma esquerda, sem o admitir, se dispensa de procurar resolver a situação real da maioria dos cidadãos, particularmente cercados e lesados pela crise monetária, pelas políticas austeritárias e pela degradação e o desequilíbrio da União Europeia. De que forma? Ao eximir-se de negociar soluções, preferindo sublinhar, a partir apenas das suas próprias razões, a necessidade de construir uma alternativa à moeda única e ao capitalismo neoliberal, que considera dever abater antes que de se pensar em minorar efetivamente o sofrimento das pessoas e os desequilíbrios verificados entre os Estados. Para quem assim pensa e age, é preciso ir à raiz, à origem, porque aí residirá verdadeiramente a «questão». Invertendo a ordem das coisas num passe de mágica, ou por uma evolução de natureza mais ou menos messiânica, poder-se-á então, de acordo com esse ponto de vista, deixar para mais tarde a solução para cada «problema», um a um. Na convicção mística, tantas vezes causadora, no passado, das maiores desgraças aos povos e às nações, mas que se insiste em considerar providencial e redentora, de que da escuridão do caos essencial, das ruínas de um profundo terramoto social, emergirá a luz viva da felicidade e do bem-estar.
Claro que as circunstâncias de rutura e as grandes escolhas podem ser, e muitas vezes são-no, ou foram-no, historicamente fecundas, podendo alterar as lógicas do desequilíbrio e da injustiça. Mas apenas disseminarão o sofrimento e a infelicidade se não encararem ao mesmo tempo, permanentemente, a realidade da vida. Ocupando-se de coisas, tão simples mas tão indispensáveis, como a forma de assegurar, para o hoje e o amanhã, como referia um slogan revolucionário de 1975 e a canção de Sérgio Godinho que dele se serviu, «a paz, o pão, habitação, saúde, educação». É disso que estão à espera os refugiados que vemos chegar às praias ou a morrer no trajeto para o pacífico Eldorado com o qual sonharam. É disso que precisam, com urgência, os cidadãos dos países menos prósperos e mais fragilizados da Europa. Uns e outros em busca, mais do que de qualquer outra coisa, de uma vida decente.
Artigo publicado no Diário As Beiras.