É comum ouvir-se dizer que a direita se une por interesses e a esquerda se separa por princípios. Talvez seja um juízo simplista, mas contém algo de verdadeiro. Simplista porque em ambos os grandes campos em que continuam a dividir-se os caminhos da coisa pública é possível encontrar cidadãos com um padrão ético que determina as suas escolhas e outros que dele são totalmente desprovidos. Tal como pessoas genuinamente empenhadas e outras sempre à procura da sua «hora da sorte». Todavia, existe também algo de verdadeiro naquela afirmação ambígua: em regra, no plano orgânico, a direita mais facilmente cede nos princípios em nome de interesses comuns mais imediatos, enquanto a esquerda frequentemente subalterniza objetivos semelhantes em função de divergências legítimas mas sem caráter de urgência.
Global, este é também o cenário em que a esquerda portuguesa tem vivido. Começou a desenhar-se antes ainda do 25 de Abril, apesar de moderado então pelo objetivo comum de derrubar o fascismo e pôr fim à Guerra Colonial, mas agravou-se com as clivagens produzidas durante o processo revolucionário de 1974-1975. O Partido Socialista, o Partido Comunista e os setores minoritários menos comprometidos com o sistema parlamentar, parte dos quais viria, um quarto de século mais tarde, a integrar o Bloco de Esquerda, incompatibilizaram-se então totalmente, gerando antagonismos e ressentimentos, associados a princípios políticos inamovíveis e a laivos de intransigência, dos quais a nossa esquerda ainda não se recompôs totalmente. Porque nenhuma das partes desejava uma aproximação a qualquer preço e porque a evolução do país jamais impôs a necessidade de uma convergência de interesses. E quando pelos meados dos anos 80, tempo da vaga neoliberal que gerou Thatcher, Reagan e Cavaco, tal possibilidade vagamente se pôs, foi obstruída pela aproximação do PS ao centro, sob a influência das teorias da «Terceira Via» e do Labour de Blair, e pela irredutibilidade do PCP, perturbado pelas dinâmicas que iriam conduzir ao fim das experiências do «socialismo real» que conservava como modelo.
Já a extrema-esquerda, essa eclipsara-se, iniciando uma longa travessia do deserto, que só começaria a esbater-se na viragem do milénio. A incompatibilização interna entre facções cresceu também no interior deste sector, onde a existência de uma reduzida base social de apoio e uma organização no terreno muito débil, criavam todas as condições para, com frequência, transformar uma vírgula programática ou uma mera antipatia pessoal em razão suficiente para recusar qualquer cedência ou contacto com quem, de facto, até se tinha muito em comum em termos de alicerçagem ideológica e de projeto político. Uma característica idiossincrática que, aliás, ainda não foi de todo varrida. Nem, provavelmente, jamais o será de uma forma plena.
Entretanto este panorama crivado de fronteiras intransponíveis perdeu boa parte do sentido. Hoje, perante um governo de direita que empobreceu o país, aumentou o desemprego, quebrou a classe média, forçou muitos dos melhores jovens a emigrar, destruiu a ciência, a saúde e a educação, e lançou a maioria dos portugueses no pessimismo e na desesperança, tudo em nome da redução de uma dívida que não conseguiu reduzir e de um crescimento económico que na verdade não aconteceu, não existe objetivo maior que não seja o de interromper este ciclo, desalojando a direita no poder e iniciando uma política de recuperação moral e material que só a vocação solidária e humanista de uma esquerda que também sabe aprender com os seus desacertos, está em condições de projetar. Invertendo a «contrarrevolução do 24 de Abril» – assim lhe chamou Boaventura de Sousa Santos num recente artigo saído na revista Visão – que se tem servido de alguns erros cometidos nos últimos quarenta anos para questionar as conquistas do Portugal democrático. Perante este cenário torna-se pois imperativo um quadro de convergência que envolva aquela esquerda que não se exclui da responsabilidade de governar e o quer fazer num quadro político de crescimento ecomómico e de oposição à austeridade.
Embora ainda ténues, existem sinais. O PS mostra-se indisponível para viabilizar qualquer governo partilhado com o PSD e o CDS, não parecendo recusar outras possibilidades caso não obtenha a maioria absoluta. E tanto o PCP, apesar da tendência atávica para tentar hegemonizar muitas alianças em que participa, como o BE, que assentou parte da sua iniciativa política recente na recusa de uma aproximação à esquerda que incluísse os socialistas – conduzindo muitos militantes e simpatizantes a seguir outros caminhos –, já se mostram agora sensíveis à possibilidade de futuros acordos pontuais, ou mesmo de governação, com o Partido Socialista. O LIVRE/Tempo de Avançar, em boa parte criado e projetado, como movimento de cidadãos, justamente para ajudar a desbloquear a irredutibilidade e a construir pontes entre a esquerda, possibilitando a construção de uma maioria capaz de assegurar uma governação decente, vê agora surgir a possibilidade de se ver mais acompanhado nesse objetivo. Apesar de constrangido na difusão da sua mensagem política por ainda não ter representação parlamentar e surgir como «pequeno partido», ao qual os meios de comunicação têm dado escassa voz.
Não, não se vislumbra no horizonte, ao contrário do que muitos cidadãos sinceramente desejam e verbalizam, uma «unidade de esquerda». Algo de tão quimérico quanto, provavelmente, de improvável e de improdutivo, dadas as diferenças no plano dos princípios e as diferentes culturas que democraticamente distinguem as suas componentes. Foi em parte por causa da legitimidade desta afirmação da diferença, traduzida num programa próprio bastante detalhado, que surgiu a candidatura do LIVRE/Tempo de Avançar. Mas o seu objetivo primordial, é preciso que fique claro, jamais foi o de erguer novas fronteiras dentro da esquerda. Pela identidade que está a construir e pela diversidade que propõe, pretende sim mobilizar muitos cidadãos que se têm afastado do direito de voto ou não se revêem noutras forças, e estimular uma convergência de interesses – contra a austeridade e pelo desenvolvimento, contra a destruição do Estado social e pela solidariedade – que terá o país e as pessoas como prioridade, aproximando as esquerdas, na sua diversidade e sem hegemonias, numa experiência de mobilização social, criação e governação tão possível quanto necessária. Para que Portugal seja de novo um país no qual apeteça viver.
O autor é candidato nas eleições legislativas de 4 de Outubro na lista do LIVRE/Tempo de Avançar pelo círculo de Coimbra. Versão um pouco alterada e ampliada do artigo publicado no Diário As Beiras.