A situação política criada em Portugal com as últimas eleições, ganhas pela coligação PSD-CDS, mas com uma clara maioria de eleitores a votarem à esquerda e com uma representação parlamentar correspondente, tem tanto de novo quanto de inesperado. Sobretudo porque configura a possibilidade, jamais experimentada, de a curto ou médio prazo se constituir um governo do «arco da esquerda», ou neste apoiado, capaz de infletir a política austeritária e de destruição do Estado social levada a cabo, de forma violenta e sistemática, pelo último governo. Neste contexto, muitos comentadores próximos da direita política com lugar mais ou menos cativo na comunicação social – entre os quais incluo uma minoria de pessoas vinculada à ala neoliberal e clientelar do PS – têm reagido através de posições que oscilam entre o pânico e o estado de negação, desenterrando episódios avulsos e mitos catastrofistas vindos do processo revolucionário de 1974-1975.
Tudo parece valer, mesmo a falsidade e os maiores anacronismos, para compor o cenário de desgraça. Como se o que aconteceu em Portugal no tempo inevitavelmente crítico e conturbado vivido há quarenta anos fosse inteira e liminarmente negativo – basta consultar a memória física da nossa transição democrática, em boa parte disponível como parte nuclear do grande acervo público do Centro de Documentação 25 de Abril, da Universidade de Coimbra, para compreender que não foi assim – e também como se, ao longo das últimas décadas, a realidade portuguesa e mundial permanecesse naquele tempo de confronto e crise que antecedeu a queda do Muro de Berlim.
Os sinais desta intemperança, associada a um aparente ou real desconhecimento, têm-se sucedido. Exemplo dessa dificuldade de perceção foi fornecido, na semana que agora finda, pelo editorial do Diário de Coimbra, assinado pelo seu diretor, replicado noutros quotidianos da região centro, que igualmente dirige, e dramaticamente publicado em primeira página, onde a invetiva destemperada contra a hipótese de um governo de esquerda – posição legítima se tivesse sido formulada como mera opinião e não como um panfleto antidemocrático que comprometeu o jornal – tomou a forma de reescrita da história e, o que é pior, de explícita ameaça, por antecipação, contra a estabilidade política e as forças que, com legitimidade constitucional, possam assumir tal escolha.
Existe nesta atitude muito de revanchismo; mas também, o que é mais grave, muito de cegueira política. Salvo para quem deixou cristalizar no tempo as suas chaves de análise, a realidade histórica na Europa é hoje totalmente outra, por comparação com aquela que existia há uns meros quinze anos. Por outro lado, tanto o Partido Socialista, como o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português, apesar de serem partidos complexos e internamente dinâmicos – mau grado a consabida pecha orgânica do centralismo democrático e alguma nostalgia do «socialismo real», até o PCP o é, pasmem os incrédulos –, possuindo bases sociais e culturas políticas diversas, têm condições para estabelecer pontes de entendimento, tendo como pedra de toque a defesa partilhada da governabilidade solidária, da recuperação económica e da soberania do país.
Para além de que, um aspeto que não é de somenos importância, se aprende a caminhar, caminhando. Isto é: será com toda a probabilidade o convívio centrado em soluções partilhadas, nomeadamente no domínio da atividade parlamentar, que permitirá quebrar o gelo e a desconfiança instalados durante décadas nos diferentes partidos, humanizando a relação de cada um com os restantes. A lógica da Guerra Fria esfumou-se e, independentemente das utopias que cada um possa ainda projetar, pode, desde que bem clarificada, estabelecer-se uma colaboração proveitosa e eficaz.
Como no filme Ghostbusters, de Ivan Reitman, os nossos caça-fantasmas ao serviço do medo e da mistificação, procuram ganhar a vida aproveitando-se da crença em mitos e na valorização do sobrenatural, ensaiando um universo pré-apocalíptico que só existe nas suas cabeças e do qual se servem em proveito próprio. Cabe lembrar que, no final desta comédia fantasista, esses fantasmas, tão improváveis quanto, afinal, ridículos e inofensivos, explodem de uma vez por todas, transformando-se numa chuva de guloseimas.
Publicado no Diário As Beiras