Ocultar e desfigurar o passado com o objetivo de o usar para moldar as consciências é uma velha tentação. Quando em 1598, no primeiro artigo do «perpétuo e irrevogável» Édito de Nantes, Henrique IV de França ordenou que os episódios das Guerras de Religião que tinham oposto católicos e huguenotes deveriam permanecer «apagados e adormecidos como coisa não acontecida», dava corpo à vontade soberana de apagar qualquer rastro de um passado instável e incómodo. Três séculos e meio depois, o relato da Guerra Civil ensinado nas escolas da Espanha do tempo de Franco impunha a representação parcial de um confronto entre os bons cruzados e os perversos «rojos», separando aqueles que mereciam a glória e o reconhecimento dos que deveriam ser esquecidos. Mais recentemente este trabalho de moldagem deixou até de requerer a intervenção direta do Estado: nas democracias contemporâneas são cada vez mais os meios de comunicação social privados a assumir como verdade única a voz triunfante. Reproduzindo-a à sombra de um passado que evita perturbá-la.
Esta perceção leva-nos ao debate sobre os usos e os abusos da memória. Em La mémoire, l’histoire, l’oubli, Paul Ricoeur falava da possibilidade desta permitir o acesso a uma reapropriação lúcida do passado, incluindo aquele dotado de uma carga traumática. Mas sublinhava também o poder do esquecimento, revelado na sua capacidade para soterrar o acontecido mas também na sua interferência na escolha do que merece ser lembrado. Ao constatar a impossibilidade de tudo recordar, Ricoeur vincava o caráter necessariamente seletivo da memória, concluindo ser a capacidade de esquecer a permitir, num paradoxo apenas aparente, a recuperação de parte do vivido. Por outras palavras, se a memória é «a matriz da história», ao escolher determinados detalhes enquanto omite outros o esquecimento impõe a reminiscência, a anamnese, como o processo pelo qual procuramos recordar-nos do episódio que falta, que se esconde, que procura escapar, configurando este esforço de recuperação «a operação central da memória».
Se a história se eleva a partir da memória para instruir de um modo mais completo e coerente o entendimento do passado, associando-o a meios de prova e a uma capacidade analítica que o simples rememorar não possui, tal não significa, porém, que não existam escolhas discutíveis e poderosas omissões, sobretudo no que diz respeito a momentos sobre os quais se encontram ecos e testemunhos que ainda podem ser recolhidos. É na perceção deste trabalho de filtragem e depuração que se inscreve um primeiro nível do chamado «dever de memória», imposto ao historiador como obrigação de nada omitir. Inscreve-se assim, no seu trabalho, um conflito permanente entre a vontade de saber e a necessidade de alijar o excesso de informação. Citando ou escolhendo omitir, verbalizando ou preferindo ignorar. Se esta operação passa pela escolha de um olhar, como a do fotógrafo que seleciona a perspetiva, nada de mau virá ao mundo, pois um levará o trabalho em nova direção. Existe no entanto um segundo nível desse «dever», que comporta uma dimensão moral, associada à necessidade de obter alguma dose de «justiça histórica» para os que foram reconhecidamente vencidos e que o olhar prevalecente excluiu.
Situa-se aqui o combate, pois de um combate se trata, entre os que, como David Rieff, autor do controverso Against Remembrance, defendem, em nome de um apaziguamento dos conflitos sociais e políticos, que aquilo que garante a tranquilidade das sociedades não é a sua possibilidade de recordar, «mas antes a sua capacidade de finalmente esquecer», assumindo que «o que lá vai, lá vai», e aqueles que, ao invés, acentuam o imperativo moral de lembrar. Por isso o dever, sentido por muitos historiadores, de proceder a uma renovação do passado através da demanda do esquecido ou do subalternizado, excluindo toda a restrição que possa ser colocada ao seu trabalho. Eric Hobsbawm reivindicou esta liberdade ao dedicar-se, no domínio da história contemporânea, a estudar os resistentes, os «primitivos da revolta», os esquecidos ou os excluídos que a generalidade dos seus colegas de métier e os programas do ensino sistematicamente omitiam ou desfiguravam.
Porém esta atitude não se confina ao trabalho de exegese do passado produzido por quem se decida a historiar tempos ou territórios desdenhados. Vai ainda mais longe, ao suscitar um esforço coletivo de resgate e redenção do vivido que muitas vezes detém um profundo significado político. Não se trata apenas de iluminar aquilo que permanecia na escuridão, mas de recolocar como sujeitos, com direito a uma voz e ao reconhecimento do seu papel, os que haviam sido deixados longe dos livros de história e do reconhecimento público. Retoma-se deste modo a proposta de Walter Benjamin de estabelecer uma relação do sujeito com o passado que escape à totalização da história, que a «escove a contrapelo», libertando «as enormes forças aprisionadas no “era uma vez” da narração histórica clássica». É então necessário, como sugeriu Emmanuel Lévinas, «que o invisível se manifeste para que a história perca o seu direito à última palavra», deixando de ser injusta, subjetiva e cruel. Um exemplo da dimensão deste trabalho de revisitação do historiado foi proposto em 2007 por Orlando Figes no extraordinário The Whisperers (Sussurros na tradução portuguesa). A partir de fragmentos do passado literalmente «murmurados», por isso inaudíveis ao longo de décadas, Figes foi capaz de reconstituir de forma consistente aspetos da vida privada da União Soviética da época de Estaline que haviam ficado soterrados pela censura e pela documentação oficial.
A evocação do Holocausto constituiu, sem dúvida, um ponto de viragem nesta forma de olhar o «dever de memória» aplicado à experiência de um vasto grupo social, ao qual, em nome de uma ordem política nova e higiénica, tinham sido impostos processos extremos de discriminação e violência. A necessidade de dar voz àqueles que os nazis tinham procurado reduzir ao total silêncio foi sentida, em primeiro lugar, pelos que, como Primo Levi, Paul Celan, Robert Antelme ou Ruth Klüger, viveram diretamente a barbárie dos lagern e lhe conseguiram sobreviver, verbalizando um estado de revolta contra uma vontade de esquecer imposta pela incredulidade, pelo trauma ou pelo desejo de retorno a um padrão de normalidade erguido sobre os escombros. Mas tem-no sido também pelos que se têm levantado contra as teses negacionistas que consideram Auschwitz um exagero ou mesmo uma invenção dos sionistas.
Algo de análogo ocorre, aliás, com a profusa memória do Gulag soviético. A percentagem de sobreviventes sobre o número total dos seus prisioneiros – instalados fundamentalmente em campos de trabalho, não de extermínio como os alemães, e que duraram décadas e não apenas alguns anos – e o abrandamento gradual do sistema a partir de 1953, permitiram a construção de um arquivo imenso, disponível, da memória do «sistema de campos», vertido em textos, alguns bem conhecidos, como os de Alexander Soljenítsin, Eugenia Ginzburg e Varlam Shalamov, ou registados num volume impressionante de cartas, gravações, fotografias e objetos-souvenir. Todavia, após um curto período de abertura nos anos noventa, o manancial de informação tem sido submetido a um novo processo de ocultação que traduz um trabalho de esquecimento, reproduzido inclusive por muitos daqueles que se têm erguido contra a desqualificação dos horrores da Shoah. Este padrão de conflito tem sido também igualmente, sob outras formas e por diferentes razões, em relação à memória da Guerra Civil de Espanha, ao rastro das ditaduras brasileira, chilena ou argentina, à evocação da Revolução Cultural chinesa ou dos conflitos vividos em Angola no pós-independência. Entre nós, naturalmente, o estudo e a evocação das décadas da ditadura não escapam a tal conflito entre a enunciação e o silenciamento.
Qual será então o resultado do resgate imposto pela consideração de um «dever de memória»? Passar a incluir aquilo que foi excluído? Inverter o ónus do esquecimento, apagando quem excluiu? Cumprir um luto por fazer? Uma frase em quarta mão, retirada por Paul Ricoeur a Hannah Arendt, que por sua vez a foi buscar à dinamarquesa Karen Blixen, pode ajudar-nos na construção de uma resposta possível: «As penas, sejam elas quais forem, tornam-se suportáveis se fizermos delas uma história.» Se as não calarmos, portanto. Se as enunciarmos. Precisamos então de lembrar tudo aquilo que for possível lembrar mostrando um passado mais completo, «indissociável da atualidade» como sugere Enzo Traverso, mas sem a pretensão de instituir um qualquer «tempo de verdade» (Benjamin de novo). Nestes dias «saturados de agora», nos quais tudo parece ser presente, inclusive o passado apropriado, essa é uma tarefa vital para estorvar o retorno do único. Que volta de toda a vez que se aceita a ruína da memória.