Durante a campanha eleitoral, num debate sobre a necessidade e a urgência de uma confluência das esquerdas, um dos intervenientes, antigo militante da Acção Socialista Portuguesa e fundador do PS, falou de um tempo, anterior ao 25 de Abril, no qual toda a esquerda «se dava bem», dado possuir «um objetivo comum que era o de derrubar o fascismo». Esse retrato é sem dúvida bastante bonito, mas infelizmente é fantasioso; tal unidade jamais existiu.
Se é verdade que nessa época muito unia as forças que se opunham ao regime salazar-marcelista – que mais podia uni-las, afinal, que a censura e a PIDE ou que a guerra? –, muito era também aquilo que as dividia, chegando essa separação, por vezes, ao extremo do ódio fratricida. Arquivos e testemunhos podem confirmá-lo. Como poderiam «dar-se todos bem» se, afinal, até na vida quotidiana da prisão política se antagonizavam? Por isso, o que aconteceu após a revolução não se traduziu no levantamento inaugural de um muro, como se tem andado agora a dizer, mas apenas num aprofundamento das diferenças. Só que agora não eram tanto, como acontecera antes de 25 de Abril, os grandes princípios políticos e as fidelidades históricas a separar as esquerdas; eram-no sobretudo as suas escolhas no que dizia respeito à relação com o poder político emergente e com o modelo de sociedade a construir.
Tudo isto aconteceu há quarenta anos e só muito gradualmente, como é sabido, se foi diluindo. Por muito que tantos tivessem pensado a possibilidade desta separação ser atenuada e trabalhado para que ela pudesse ocorrer. Por isso a presente hipótese de um governo que traduza uma maioria parlamentar à esquerda é, como todos reconhecem, um salto qualitativo novo e imenso. Positivo e urgente, porque associado a um imperativo nacional de sobrevivência das conquistas essenciais de Abril e de salvaguarda de uma vida decente. Mas não reescreve o passado nem apaga a diferença. Esta é a pura verdade. Reconhecer esta diferença não pode, no entanto, de uma forma fatalista, determinar o retorno a curto prazo da velha luta fratricida. Pelo contrário, em alguns momentos evocar o que separa ajuda a exorcizar fantasmas e a uma aproximação de posições.
Pelo facto de, com toda a força e esperança, nos últimos anos ter vindo a apoiar esta possibilidade de um governo de convergência decididamente à esquerda, não deixo de reconhecer que existem inúmeras dificuldades para o conseguir erguer e mais ainda para o manter. No interior do PS, do BE e do PCP existem muitos militantes, e principalmente muitos dirigentes, que genuinamente a vêm com bons olhos; mas muitos outros dela desconfiam ou entendem-na como necessidade meramente conjuntural. O que é absolutamente normal, pois só a materialização de uma proposta conjunta e, a acompanhá-la, a celebração de ações legislativas e políticas comuns poderão começar a quebrar o gelo, estabelecendo alguns laços de confiança apoiados numa experiência partilhada.
No Partido Socialista, por exemplo, existem muitos militantes aos quais é inteiramente estranho o ideal tendencialmente igualitário e solidário que é o da matriz socialista ou social-democrata, aquela que pode aproximá-los, no plano da ideologia, mas também da experiência governativa, dos seus novos parceiros. Encontram-se também vícios clientelares tremendos, partilhados aliás com os partidos da direita parlamentar, que constituem sempre um obstáculo ao estabelecimento de acordos com os seus parceiros naturais e com boa parte do seu potencial eleitorado.
Já no Bloco, que ainda recentemente atribuía um intransigente labéu «de direita» ao PS no seu todo, levando por isso ao afastamento de alguns apoiantes de longa data, estou em crer que a maleabilidade da larga maioria dos seus membros, a sua cultura antidogmática, bem como o seu empenho na definição de uma política europeia para Portugal, tornará mais fácil a instalação de espaços de diálogo, nos quais as diferenças não se revelem intransponíveis. Um «banho de realismo», associado à gestão diária da coisa pública, constituirá sempre uma experiência positiva, por muito que algumas das suas franjas o possam vir a recusar, retornando a algumas antigas convicções maximalistas.
Com o PCP a situação será mais complexa. O referencial histórico do partido, que jamais questionou algumas das mais negras páginas contemporâneas nas quais «partidos irmãos» desempenharam um papel (basta ler alguns editoriais recentes do Avante!), a posição parcial em relação aos direitos humanos (em Angola, na China e na Coreia do Norte), a oposição declarada à União Europeia e ao euro, o elevado afã coletivista, os tiques advindos da conceção leninista de «partido de vanguarda», são alguns aspetos que não podem mudar de um dia para o outro. Mas o partido, com uma base social sólida, conterá em si inteligência, dinamismo e sensibilidade suficientes para confirmar que vai longe o tempo em que os valores da democracia podiam ser sempre revistos em nome da rigidez dos princípios.
Por tudo isto estamos em condições de aceitar que o grau de confiança política necessário à instauração e à estabilização de um governo de esquerda tem, neste final de 2015, todas as condições para emergir e se desenvolver. Seja o que for que possa vir a acontecer, inclusive a necessidade futura de que os caminhos voltem a divergir, as sinergias que tiverem entretanto lugar jamais permitirão o completo regresso a um passado de incompreensão e de ânimos acesos tal como o conhecemos. Neste sentido, com tudo o que tem ainda de imprevisível, a experiência nova de um «Portugal à esquerda» tem tudo para ser complexa, é verdade, mas também para se mostrar exaltante e fecunda. Mudando tudo e todos.