Perante a dimensão da catástrofe, não venham com os argumentos do costume. Argumentos que fazem bastantes vezes algum sentido mas deslocam a responsabilidade do horror para alvos que, neste momento, são laterais, e que desviam a atenção daquele que é, já não existe outra forma de o identificar, o inimigo principal. Refiro-me ao ataque do islão mais irredutível e radical – pelo que se sabe, e pelas características dos atentados em Paris, falamos do autoproclamado Estado Islâmico – a pessoas comuns, de todos os credos, falas e raças, apenas culpadas por viverem na Europa e se divertirem. E a uma declaração de guerra aos fundamentos históricos da democracia, da laicidade e do simples direito à fruição da vida – recordemos que as vítimas foram essencialmente pessoas que gostavam de futebol, ou de música, ou de jantar fora numa noite de sexta-feira –, que para os fanáticos assassinos são demoníacos e não possuem qualquer valor.
É verdade que parte do terrorismo islamita foi, no passado, direta ou indiretamente alimentado, no plano político ou mesmo logístico, por políticas erradas dos EUA e dos seus aliados (muito em particular a Arábia Saudita, com quem ainda um dia será preciso ajustar contas). Como é verdade também que se fizeram intervenções militares desnecessárias, abusivas e contraproducentes, capazes de alimentar o ódio entre pessoas comuns. Como é certo que a expansão das desigualdades na generalidade dos países islâmicos não tem parado de crescer, ampliando o contigente dos desesperados. Ou que a dimensão arrasadora da ignorância entre a população dos seus territórios é uma porta aberta a todos os fanatismos. Ou que uma política atenta e coerente de integração dos imigrantes na Europa tem sido menosprezada, empurrando muitos para as malhas da violência mais extrema. Tudo isso é verdadeiro e não pode ou deve ser esquecido.
Mas o monstro gerado cresceu e ganhou vida própria. Concentrar-nos, nesta altura, a ajustar contas com o passado enquanto nos estão a arrombar com fragor a porta da frente, é totalmente estúpido e suicida, transformando os que o fazem em «idiotas úteis», cúmplices dos bandidos. Neste preciso momento, muito mais importante que gastar as energias a fazer a arqueologia da responsabilidade pelo seu surgimento, é combater este monstro de frente. Com sabedoria, paciência e a cabeça fria, mas também com firmeza e sem concessões. Já não existe outro caminho. Até porque outro monstro, parasita do primeiro, vai agora tomar o freio nos dentes: o da islamofobia, do racismo e da xenofobia, que a extrema-direita vai alimentar em proveito próprio. Contra os imigrados, contra os refugiados, contra a liberdade e contra a democracia. Por uma Europa-fortaleza que a ninguém servirá.