Pelos finais da década de 1980, dava eu aulas de história política cujo programa dedicava cerca de um mês a anatomizar as origens e os progressos do conceito de soberania. Ainda não se viviam os tempos de simplificação impostos por Bolonha, as cadeiras eram anuais, e por isso tinha tempo suficiente para, por exemplo, dedicar uma aula inteira à vida e obra de alguém como Jean Bodin, ou Bodino (1530-1596), o pouco simpático jurista francês, conhecido também como «Procurador Geral do Diabo» devido à ferocidade com que se dedicou a justificar a perseguição de heréticos e de pobres mulheres acusadas de feitiçaria. É dele, no entanto, a clássica definição de soberania, tomada como a dimensão de poder que nada reconhece de superior na ordem externa nem de igual na ordem interna.
O conceito foi decisivo para a legitimação da autoridade monárquica, contra as intenções do papado e da alta nobreza, desde havia séculos com ele concorrentes. É dele que retiramos a ideia, hoje assente, do «poder soberano» como aquele que apenas encontra limites nas suas próprias escolhas, considerando, porém, como já na lógica proposta por Bodin se verificava, que tal não significava a defesa de qualquer forma de tirania, ou de poder absoluto, mas sim a conformação das decisões políticas aos interesses do que na época se chamava «razão de Estado». A soberania implicava, pois, a total autonomia do Estado, e de certa maneira do interesse público, face aos poderes que com ele concorriam, em particular aqueles, com dimensão imperial, que visavam afirmar-se como fonte de autoridade, a ser observada pelas unidades políticas nacionais, tomadas como inferiores.
A ideia de soberania evoluiu com o tempo e hoje é vista de forma crescentemente complexa, mas o seu sentido essencial mantém-se. Nas atuais circunstâncias, e em particular no espaço europeu, com as instâncias comunitárias vinculadas à direita política e aos interesses económicos que tentam sobrepor-se aos interesses dos povos e à independência dos governos dos Estados, vai ganhando um novo fôlego e um novo sentido. Tendo, aliás, ao contrário do que acontecera no passado, sido integrada no léxico da esquerda como parte da sua missão patriótica – outrora adotada pelos setores políticos mais conservadores – perante as exigências chegadas do exterior. Foi esta mudança que a direita portuguesa, recentemente varrida no poder, não soube entender, aceitando assumir-se essencialmente como porta-voz interno, ou como fiel executante, de um poder que fala outra língua e não possui uma perspetiva justa e igualitária, efetivamente europeísta, das relações entre os povos e os Estados. A sua posição assumidamente antisoberanista é vergonhosa e não pode deixar de ser sublinhada. Para que se perceba quem é quem quando se trata de deixar o interesse público na boca do lobo. E também para memória futura.
Publicado no Diário As Beiras