Passou-me há dias pelas mãos um número já com algum tempo da revista New Yorker que trazia um texto do crítico Giles Harvey onde este abordava um curioso nicho do mercado livreiro dos Estados Unidos. O título do artigo, «Cry me a river», que traduzo muito livremente por «Um rio de lágrimas», era uma óbvia paráfrase de parte do refrão da popular canção sobre um amor frustrado, escrita em 1953 por Arthur Hamilton para a voz poderosa de Ella Fitzgerald, na qual a intérprete pede insistentemente que com ela choremos o seu destino. «Come on and cry me a river, cry me a river / ‘Cause I cried a river over you», ali implorava aquela à qual um dia alguém chamou «a primeira dama da canção». A escolha da frase ajustava-se de uma forma perfeita ao artigo de Harvey.
Este chamava a atenção para um género literário, segundo ele associado no mercado norte-americano a um bem razoável volume de vendas. O género que reúne um conjunto de títulos de escritores falhados capazes de abordar em livro o percurso do seu próprio falhanço. Não é difícil calcular o motivo do êxito: o escritor loser, o falhado, escreve para outros losers, mostrando-lhes de que modo a sua incapacidade para conceber um bom argumento e para escrever de uma forma reconhecida pela crítica, para «vencer», faz deles pessoas comuns. Destacam-se, desta forma, não pelo que fizeram, mas justamente por aquilo que não fizeram. Um pouco como naqueles reality shows televisivos nos quais os participantes se caracterizam, acima de tudo, por não possuírem a menor qualificação, por exibirem pornograficamente o seu rosto de «Zé Ninguém», tornando-se populares entre os menos qualificados porque estes os olham como seus iguais. Num lugar sob os holofotes onde eles também poderiam estar e não se importariam de estar.
Em sociedades nas quais a argúcia ou a esperteza são valorizados acima do esforço e da inteligência é fácil perceber este interesse por quem se destaca justamente por em nada se distinguir. Daí não viria mal ao mundo não fora dar-se o caso dessa irrelevância ser cada vez mais promovida e premiada. Por homens e mulheres sem rasto de génio ou de originalidade, «sem qualidades» como o protagonista do romance de Musil, se tornarem, cada vez mais, capa de revista, pedindo-se-lhes apenas que mostrem em público a sua insignificância e a sua vida banal. O seu sucesso advém assim da sua extrema vulgaridade. Mas aqui já não falamos de alguém que, como na literatura à qual se referia o artigo da New Yorker, vive o seu falhanço e espera que outros falhados os chorem. Falamos de pessoas para quem notoriedade e insucesso, ou mesmo fama e infâmia, são totalmente compatíveis. Que valem porque o seu nome surge impresso nos tablóides e o seu rosto aparece, ainda que só por alguns minutos, nos nossos ecrãs domésticos. Se acrescentam algo a alguma coisa, isso não vem ao caso.
Publicado no Diário As Beiras