A esquerda, e em particular aquela que não separa os princípios da solidariedade e da igualdade dos direitos, centrais na definição da sua matriz política, da defesa da liberdade individual e das diferenças de opinião como expressão indiscutível de uma democracia sem adjetivos, vive hoje tempos bem difíceis. Por todo o lado, encontramos um regresso à naturalização da desigualdade, uma revisitação dos nacionalismos mais ferozes, um retorno da xenofobia e do racismo, bem como o recuo das conquistas sociais obtidas em dois séculos de luta operária e popular e de combate por uma cidadania plena.
A direita alimenta estas tendências negativas de uma forma eficaz, servindo-se da crise económica, da instabilidade que esta traz, do desemprego, do terrorismo, do medo, da ignorância, do controlo da informação, para se apropriar do poder por via democrática e instaurar políticas autoritárias, sob a promessa de tudo resolver a partir de uma posição de força. Diante deste cenário, a esquerda, envolvida nas suas contradições e inapta para projetos capazes e mobilizadores, tem-se remetido a uma posição defensiva, de resistência, que só aqui e acolá vai passando pelos caminhos de aproximação que durante largas décadas quase sempre rejeitou. As lições sobre as consequências do divisionismo, oferecidas nos anos 30 pela ascensão do nacional-socialismo na Alemanha e pelo triunfo do golpismo franquista em Espanha, vão sendo invocadas pelos que pretendem evitar que a história se repita.
Ao mesmo tempo, pelo menos em alguns lugares começa a compreender-se que, para ser possível e eficaz, este esforço de colaboração entre as diversas esquerdas não pode, nem deve passar, pela diluição das diferenças, por vezes consideráveis, que separam as suas componentes. Essa seria, aliás, uma tarefa impossível de cumprir, cujos resultados se revelaram já comprovadamente catastróficos. A historiadora Anne Applebaum publicou em 2012 um livro inteiro sobre isso: Iron Curtain. The Crushing of Eastern Europe. 1944-1956. A cooperação entre os partidos e as organizações da esquerda passa antes pela confluência de pontos de vista e de interesses, tendo como pressuposto a participação comum na construção de uma sociedade de bem-estar, o controlo da demolidora desordem neoliberal e a contenção das forças agressivas da direita política.
Em Portugal a possibilidade de uma colaboração começou a ser vislumbrada nos últimos tempos do governo funesto do PSD-CDS e foi materializada há pouco mais de um ano, através dos acordos de incidência parlamentar que reuniram o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista Português. Estes acordos, que foram também pactos, têm produzido efeitos positivos e, como o sugerem as sucessivas sondagens, cada vez mais favoráveis à esquerda, têm mobilizado setores da sociedade que não corresponderão sequer apenas aos que votaram naqueles partidos nas últimas eleições legislativas.
A duas condicionantes desta aproximação, a externa e a interna, têm levado a que certos fatores de divergência tenham passado para segundo plano, em favor daquilo que é realmente urgente, imperativo e politicamente útil. Como venho, em termos de trajeto político, de uma esquerda na qual, por vezes, a mera vírgula numa frase servia de justificação plena para insanáveis divergências e para cortes de relações políticas e pessoais, e conhecendo também a sua história atribulada, julgo estar em condições de compreender e de partilhar este novo esforço, esperando que ele se mantenha por bastante tempo. Com a possibilidade acrescida de que a colaboração possa ajudar a diluir algumas aversões e desentendimentos mais extremos, ampliando as condições para novos e mais completos avanços. Na sempre incontornável aceitação democrática das diferenças de opinião, de passados distintos e de programas próprios.
No entanto, não me parece que algumas experiências, e certas ideias a elas associadas, devam ser relevadas, silenciadas ou mesmo apagadas em nome de tal convergência. Ou que se deva fazer de conta que jamais existiram. Uma delas passa pela presunção de que uma sociedade mais justa pode fundar-se em governos apoiados no pensamento único, no autoritarismo de raiz ideológica e na repressão da diferença, associados a um modelo de gestão da sociedade decidido em conclave ou em «petit comité» pela direção de um qualquer partido ou movimento. A esse respeito não pode nem deve reescrever-se a história, com vitórias pontuais, mas geralmente sombria e sangrenta, das experiências do «socialismo realmente existente», que caíram em 1989-1991 ou se reconverteram após esta data.
A experiência histórica do estalinismo, hoje estudada e comprovada, com os seus brutais excessos, a afirmação de políticas agressoras dos povos e as largas dezenas de milhões de mortos, encarcerados e perseguidos que arrastou consigo, e que ultrapassou largamente as fronteiras da velha União Soviética e do seu sistema de campos do Gulag, não pode ser rasurada ou omitida, sob o perigo de, para além de se trair a memória daqueles que injustamente cilindrou – muitos deles convictos militantes ou apoiantes do ideal comunista –, se reerguer das cinzas e moldar novos projetos políticos despojados de memória. Tal como molda ainda, aqui bem perto de nós, certas consciências mais movidas pela fé que pelo conhecimento e pela experiência.
E não, não se trata de «propaganda do inimigo de classe», ou «da CIA», mas de informação histórica e memorialística confirmada e testemunhada, hoje disponível para quem a quiser conhecer em livros e jornais, em bibliotecas e arquivos, em sites credíveis, em documentários fílmicos e até em alguns museus. Apesar – como se tivesse qualquer autoridade para defender a liberdade – de a direita recorrer a alguma dessa informação para mobilizar os cidadãos contra a esquerda e atingir os seus próprios objetivos. A direita só o faz, aliás, porque existe quem insista em negar os crimes, antigos ou mais recentes, e em absolver os gravíssimos erros de estratégia, em vez de encarar o seu conhecimento e análise como terapêutica para uma intervenção política mais salubre e mais justa.
É aqui que cabe uma curta abordagem da natureza do papel histórico de Fidel Castro e da essência do regime cubano, agora tão presentes após a morte natural do velho Comandante. Não pode estar em causa o seu lugar na emergência de uma consciência anti-imperialista e anticapitalista durante a segunda metade do século XX. Já escrevi repetidamente sobre isso e não vou insistir – pode reler-se aqui um artigo, «Revolução, esperança e nostalgia», que em 2010 publiquei sobre o tema –, pelo que sublinho apenas que eles representaram, para uma larga maioria do povo de Cuba e para grande parte da consciência progressista mundial, sobretudo para quem conheceu a saga heroica dos «barbudos» da Sierra Maestra, uma fonte de simpatia e de grandes esperanças. Mesmo para muitas pessoas que não simpatizavam com os ideais do comunismo, ideologia que Fidel, aliás, não assumiu nos primeiros tempos em Havana.
Porém, esse papel, associado a algumas importantes conquistas do regime em áreas como a saúde ou a educação – também as houve, aliás, em vários dos «Estados socialistas» desaparecidos ou existentes – não pode ser suficiente, apesar do criminoso e desnecessário embargo norte-americano, para justificar uma realidade constantemente testemunhada pela larga maioria das pessoas que, fora da bolha protetora dos «partidos irmãos» e das Associações de Amizade, tiveram a oportunidade de visitar Cuba ao longo das últimas décadas, ou então se foram informando sobre o seu trajeto histórico mais recente.
Poderia falar-se de muitos erros políticos: do abandono de um certo padrão de apoio internacionalista centrado no «foquismo» guerrilheiro, contrariando o desejo do próprio Che Guevara (e trocado mais tarde pelo apoio a «regimes irmãos» ditatoriais, como o angolano ou o etíope), do apoio à repressão sangrenta da Primavera de Praga, da justificação da matança de Tiananmen, da política económica desastrosa assente na monocultura e no apoio financeiro da antiga URSS, da destruição quase total da iniciativa privada, confinada ao mercado negro, do controlo da própria hierarquia da Igreja católica, da posterior produção de «duas Cubas», uma a dos cubanos, a outra a dos turistas. Mas todos eles, por mais graves que tenham sido, podem ter resultado de contingências difíceis de contornar.
Aquilo que já é mais difícil de entender, e mais ainda de aceitar, é a manutenção, ao longo de 57 anos de regime, de um sistema de partido único, de uma informação constantemente censurada, de ausência de eleições livres, do apagamento dos sindicatos, de milhares de presos políticos e dos protestos das «Damas de Blanco», de tantos torturados e fuzilados (incluindo alguns dos lutadores contra o ditador Batista), da polícia política (e respetivos informadores «milicianos»), de uma sociedade militarizada, da repressão dos homossexuais, dos privilégios da «nomenklatura», da coação à livre circulação dos cidadãos, de «insulação» da ilha e dos seus habitantes (e tantos escritores cubanos se queixam disto, mesmo entre os que amam Cuba e não desejam deixá-la…). Esta foi, pois, e continua a ser, uma escolha política, infelizmente apresentada ainda, como um exemplo, por aqueles que não reconhecem a corrupção, «natural» ou não, do regime.
E é esta escolha que deve ser claramente lembrada e denunciada, independentemente das circunstâncias que envolvem aqueles que a assumem. Mesmo que esse gesto possa causar algum passageiro incómodo nas estratégias de unidade. É que, em democracia, sem o estabelecimento de um mínimo de valores partilhados entre as partes, e sem uma confiança política assente no caráter inalienável da diferença, toda a convergência será sempre transitória e acabará por sucumbir. Por isso, silenciar passados para não incomodar companheiros de viagem mais intransigentes nas suas crenças – como até a militantes do PS vejo fazer – não augura nada de bom. Noutros tempos, em Cuba, a convergência também existiu e foi rapidamente desmembrada. Alguns livros de história falam disso.