Três notas prévias:
1. Esta nota de leitura foi escrita e publicada em Dezembro de 2006. Republico-a no momento em que a biografia de Estaline a que se refere, escrita por Simon Sebag Montefiore, vai ser distribuída, a partir de sábado, com o semanário Expresso. Aconselho a sua leitura – crítica, como todas as leituras o devem ser – e julgo ter explicado aqui porquê.
2. O livro é divulgado em tempo do que parece ser uma nova Guerra Fria, quando a direita se serve dos crimes cometidos em nome da esquerda e, infelizmente, parte desta insiste em recusar a História como meio de aprendizagem. Seria bom que quem luta por uma causa essencialmente justa, como a do socialismo e do comunismo o é, aprendesse, de mente aberta e sem tabus, com os erros e crimes que em seu nome foram cometidos. Redimindo a memória daqueles que eles atingiram, em grande parte adeptos convictos da sua causa.
3. Neste intervalo foram numerosos os estudos históricos publicados sobre Estaline, o estalinismo e o Gulag, vários deles traduzidos, que são merecedores de consideração profissional e não podem ser considerados «propaganda do inimigo» ou «aldrabice», como por estes dias tenho lido. Um deles é outro de Montefiore, sobre O Jovem Estaline, traduzido entre nós em 2008. Voltarei ao assunto logo que possível.
Da casa dos mortos
17/12/2006
O subtítulo, bastante infeliz, recorda uma certa literatura antisoviética do tempo da Guerra Fria. Mas Estaline – A Corte do Czar Vermelho, do jornalista e historiador britânico Simon Sebag Montefiore (ed. Alêtheia, 2006), não é, de forma alguma, um livro de propaganda ou de um sensacionalismo oportunista fora do tempo.
Tendo ganho em 2004 o History Book of The Year Award, atribuído pelos British Book Awards, resulta antes de um trabalho prolongado, desenvolvido no terreno ao longo da década de 1990, época na qual Montefiore percorreu uma boa parte da antiga União Soviética, pesquisando e escrevendo ao mesmo tempo artigos para o Sunday Times, o New York Times e a Spectator. Ao estudo e à experiência que foi acumulando, juntou, a partir de 2000, um trabalho minucioso, e surpreendentemente rápido, sobre os arquivos pessoais dos antigos membros do Politburo do Partido Comunista, entretanto tornados disponíveis para consulta pública.
Não se trata de mais uma biografia de Estaline, mas antes de um relato, bastante pormenorizado, da vida íntima, ou daquela preservada da exposição pública, dos principais dirigentes da União Soviética e das suas famílias durante o período no qual o georgiano de Gori assumiu a direcção do Partido e do Estado. Tal qual essa vida decorreu nos espaços fechados – gabinetes, corredores e antecâmaras, alpendres de dachas, conclaves partidários, mas também salas de tribunal, câmaras de tortura, prisões e paredões de fuzilamento – de onde apenas saíam para executarem decisões, ou, como aconteceu a um grande número deles, para serem abatidos e apagados da História pelo mesmo sistema que ajudaram a erguer.
Esta é, pois, uma obra em «huis clos», sobre um universo até há pouco tempo conservado impenetrável ou confinado aos testemunhos bastante parciais de quem apenas episodicamente o entrevira e pôde «viver para contá-lo». Desta vez, quem fala são também os relatórios mantidos ultra-confidenciais durante décadas, as cartas directamente dirigidas ao «pai dos povos», os bilhetes pessoais trocados durante as reuniões ou durante almoços e jantares, os telegramas urgentes, até mesmo as caricaturas naïf e as piadas brejeiras com as quais os dignitários do regime aliviavam a imensa tensão na qual viviam e que o meticuloso sistema de arquivo e informação entendeu preservar.