Para Norberto Bobbio, o sectarismo em política traduz-se na condescendência para com aqueles que partilham as mesmas ideias e num ódio declarado a todos os que não pensam da mesma forma. Os sectários entrincheiram-se num sistema de pensamento único, recusando tudo o que dele se afaste ou que lhes pareça fragilizá-lo. Fazem-no mesmo quando, por razões conjunturais, são forçados a dialogar com quem divergem em muitas das posições ou escolhas. Mas só cedem em último caso, quando não lhes resta alternativa. Levam então o seu sectarismo para recantos onde ainda o podem exercer: em círculos sociais restritos, partilhados por outras pessoas do mesmo grupo, ou então procurando, por omissão ou silêncio, sabotar as iniciativas que ponham em causa aquelas certezas das quais de facto jamais abdicaram.
Nos tempos que correm, de uma cada vez mais rápida expansão e vulgarização da informação, graças em grande medida ao papel das páginas eletrónicas dos órgãos de comunicação (e das suas medonhas caixas de comentários), dos blogues e das redes sociais, esta estratégia estende os tentáculos e torna-se mais facilmente percetível. Quando não podem mostrá-lo em público, os sectários passeiam a sua rigidez por esses lugares, em particular por aqueles que consideram menos responsabilizantes por lhes permitirem falar apenas em nome próprio ou mesmo de forma anónima. Em Portugal, qualquer um pode constatá-lo observando o que pensam e escrevem em blogues ou nas redes sociais pessoas, filiadas em partidos, que ultrapassam a moderação que as suas direções incorporam, falando «em nome pessoal». Deixam então jorrar ali a torrente de inflexibilidade que na verdade jamais abandonaram.
Podemos encontrar exemplos deste comportamento contraditório na forma como, nas circunstâncias dramáticas da segunda volta das eleições presidenciais em França, se referem ao confronto entre um político neoliberal, vindo do sistema bancário e sem vínculo partidário, e a candidata da extrema-direita. Perante o dilema, os partidos e movimentos de esquerda portugueses têm procurado contornar o assunto, não avançando qualquer indicação de voto clara – que deveriam ter assumido, dada a sua matriz politica, o perigo máximo que se configura e a relação específica de Portugal com a França –, embora a maioria dos seus militantes e simpatizantes reconheça a necessidade imperativa de derrotar Marine Le Pen. Todavia, se formos a alguns blogues, ou entrarmos em páginas pessoais e grupos do Facebook, encontramos muitos outros que defendem a abstenção ou que, em função do desejo cego de fazer implodir a União Europeia, ou da lógica absurda do «quanto pior, melhor», propõem mesmo o voto na candidata da Frente Nacional.
O sectarismo dificulta a transparência democrática e introduz ruído no diálogo político, uma vez que coloca os interesses de grupo, e os princípios partilhados que dão corpo a projetos comuns, na dependência das convicções profundas, de sinal contrário, de alguns daqueles que os integram. É um fator de descaraterização e de desconfiança entre os cidadãos, exigindo um trabalho ético e pedagógico persistente, que sem questionar o imprescindível direito à divergência e à crítica, combata no interior das forças políticas a conservação subterrânea de posições inconciliáveis com as que são publicamente expressas. Um partido de antisectários não existe, é verdade: só Albert Camus o vislumbrou, ao declarar num passo dos Cadernos, de forma irónica, que se existisse algum composto por «aqueles que não têm a certeza de ter razão» faria de imediato parte dele. Mas não é demais pedir às direções partidárias algum trabalho pedagógico nesse sentido.
Talvez quem me leia tenha uma certa dificuldade em entender do que falo. Ou o considere pouco relevante. Ou entenda que a situação já foi pior. A esses, se para tal tiverem paciência, sugiro uma digressão por páginas pessoais e grupos das redes sociais, ou por blogues que não são difíceis de encontrar. Basta estarem atentos e irem seguindo os links. Verão como há falcões sectários a digerir mal o terem de passar por pombas. Verão como o que defendem tem mais a ver com cegueira sectária que com convicção democrática. Verão como o atual entendimento parlamentar, com irrefutáveis êxitos na gestão corrente do país, poderá revelar pés de barro.
Publicado em 6/5/2017 no Diário As Beiras