Apesar de subsistirem fatores de desigualdade no acesso à informação, à livre expressão da opinião e à independência perante as várias formas de poder – do económico ao político, do central ao local –, vivemos felizmente numa sociedade na qual ninguém pode ser formalmente coagido a pensar ou a agir como os outros. Apesar da fruição da liberdade não ser rigorosamente idêntica para todas as pessoas, em ambientes democráticos como o nosso cada uma conserva uma margem para pensar, para falar, para escrever de forma autónoma, sem que para tal tenha de limitar-se a reproduzir ou a aceitar acriticamente as ideias, as opiniões e as escolhas que são maioritárias ou se apresentam como consensuais.
Todavia, muitos dos meios de comunicação social, que deveriam ser essencialmente fatores de pluralismo, de informação e de conhecimento, têm vindo a difundir supostos unanimismos que limitam essa liberdade, fazendo por vezes recordar os meios de coação existentes nos regimes do século passado que fundaram a sua autoridade na imposição do partido único e na afirmação de um pensamento monolítico dominante. Nos quais o «eu» individual diariamente sucumbia, limitado, ou mesmo esmagado, por uma ideia de coletivo e de «senso comum» que se lhe impunha como uma pesada canga. Processada dessa forma, apresentando escolhas parciais como representando consensos, a intervenção desses meios tendo hoje a excluir as perspetivas plurais e a desvalorizar a diversidade e a capacidade crítica, condicionando em muito a liberdade e a voz de quem não se revê na suposta unanimidade que veiculam.
No final da semana passada, e durante um só dia, pudemos escutar centenas de vezes, nos diversos meios de informação, alusões a um «nós, portugueses» uniformizador, que identificava os cidadãos nacionais, todos eles, ou no mínimo a sua larga maioria, com os crentes de uma única religião cujo chefe visitou o nosso país, com os adeptos de um clube que ganhou a liga de futebol ou mesmo com os apreciadores de uma canção premiada num festival internacional. Essas conjeturas são, é claro, generalizações abusivas, pois ninguém pode arrogar-se a tomar o particular pelo todo, impondo como consensual, ou como sendo do interesse ou da escolha de todos, aquilo que apenas se aplica a alguns, ainda que estes possam ser, ou sejam de facto, em elevado número. Mas foi isso que foi vertido em sucessivos títulos, destaques e comentários disseminados por jornais e programas de televisão, e ampliado depois nas redes sociais, numa barragem de gosto uniforme que poderia conduzir um eventual visitante estrangeiro a julgar-se num país-irmão da Coreia do Norte.
Estes são sinais preocupantes da imposição de uma norma, tendente a desqualificar quem não pensa de maneira idêntica, não reza da mesma forma ou não gosta das mesmas coisas, que tem vindo a ganhar curso neste mundo de novo a viver transtornados tempos de intolerância e inflexibilidade. Agora a pulsão totalitária já não se funda necessariamente em regimes de um só partido, apoiados na rigidez da ideologia, já não se apoia apenas na intervenção da censura e na repressão da policia e dos tribunais, nem se funda apenas em proclamações que consideram incontornáveis determinadas imposições vindas do exterior. Na verdade, a disseminação mediática da norma, da imposição da parte ao todo, e que rejeita ou discrimina a diferença, também acalenta essa vertigem. «A liberdade», escreveu Hannah Arendt, «encontra na pluralidade a sua expressão». Sem esta, ela é «apenas teórica», acabando inevitavelmente por definhar e morrer, instalando a submissão da convicção e do pensamento. Não se julgue que estou a exagerar, pois já aconteceu demasiadas vezes.
Fotograma de «1984», de Michael Radford
Publicado em 20/5/2017 no Diário As Beiras