Hesitei um pouco ao escolher o tema desta crónica. Não porque não valha a pena falar ainda do grande e terrível incêndio que há cerca de uma semana devastou parte significativa dos concelhos de Pedrógão Grande, Castanheira de Pêra e Figueiró dos Vinhos, e tanta destruição e morte trouxe àquela região. Mas porque a forma como este tem sido tratado leva a considerações sobre escolhas e comportamentos dos quais me agrada pouco falar. Porém, como é hábito dizer-se, o que tem de ser tem muita força.
Começo por esclarecer que a paisagem de devastação com a qual o país foi confrontado me era já tristemente familiar. Nasci, cresci e vivi em Castanheira de Pêra, e a ela me ligam afetos e memórias indissipáveis. Estas incluem dias e noites de verão com as sirenes a tocar em permanência, o horizonte tingido de vermelho e o ar irrespirável do fumo e da cinza. E, dadas as caraterísticas topográficas do concelho, o medo de um dia não poder fugir das chamas. Recordo também o heroísmo dos bombeiros, maioritariamente operários, que por vezes chegavam a ver descontados nos seus magros salários as horas e os dias em que não trabalhavam para executar o seu trabalho solidário. Alguns esqueceram-no, eu não. Porém, memória alguma das que trago comigo contém episódio que possa ser comparado, em termos de dimensão e de consequências, à tragédia que acaba de ser vivida.
Sobre ela recaiu a atenção de dois campos da vida pública que é importante observar. Refiro-me à comunicação social, em particular à intervenção no terreno das estações de televisão, e ao comportamento posterior dos partidos políticos que à direita procuram opor-se ao atual governo, servindo-se da desgraça coletiva como instrumento.
Em situações de catástrofe, por definição imprevistas e dificilmente controláveis, a disseminação de informações contraditórias e por vezes erradas é inevitável. Neste caso, jornais e televisões tiveram naturais dificuldades em relatar o que estava a acontecer, mas fizeram-no, numa primeira fase, da forma possível. No entanto, a ânsia de dados espetaculares, capazes de mobilizar pelo choque leitores e audiências, cedo os levou a disseminar erros e interpretações que poderiam ter sido evitados se fosse ouvido quem conhece a região. Disse-se, por exemplo, que as pessoas mortas na estrada N236, tinham sido encaminhadas para ela a partir do IC8, quando, na verdade, todas eram originárias – como bem mostrou, entretanto, o semanário Expresso – de um dédalo de pequenas estradas por onde fugiram em pânico a partir das aldeias diretamente afetadas pelas chamas.
O pior, porém, tem acontecido nos últimos dias, quando grande parte desses meios de informação passou a dar particular destaque às posições da oposição de direita, ampliando a confusão em vez de desvanecê-la. É certo que têm sido levantadas questões que merecem atenção. Independentemente do caráter excecional das condições climatéricas que claramente permitiram ou aceleraram a catástrofe, existiram dificuldades técnicas, nomeadamente no campo das comunicações, e eventualmente erros humanos que a podem ter ampliado. Tal como existem problemas estruturais na gestão do território florestal que terão potenciado os problemas. Isto deve, sem dúvida, ser debatido e esclarecido, de modo a acautelar o futuro e a corrigir o que tiver de ser corrigido.
Porém, coisa inteiramente diversa é, como está a acontecer com o suporte de jornais e televisões, imputar as responsabilidades do que ocorreu ao próprio governo, pelo simples facto de… ser governo. Para o efeito vasculha-se a realidade envolvente e aponta-se o dedo aos intervenientes com responsabilidades, partindo de uma demagógica presunção de culpa que inquina toda a abordagem. Alteram-se mesmo realidades estruturais, desde há décadas identificadas como falhas pelos especialistas. Dois exemplos centrados na mesma pessoa: a alusão de Passos Coelho a suicídios provocados pela falta de cuidado das autoridades – assunto sensível que ainda que correspondesse à verdade deveria ser tratado com pinças –, e a sua espantosa referência ao facto de nada do que aconteceu ter a ver com a extensão selvagem da cultura do eucalipto. Que, nas suas palavras, «não arde».
O jogo político inclui, sem dúvida, o questionamento de todas as situações, mesmo as mais duras e difíceis. E uma calamidade não pode ser exceção. Mas jamais deturpando a realidade e usando a situação de choque e de ansiedade que uma desta dimensão inevitavelmente provoca nas populações. Servindo-se dela como arma de arremesso. É política e eticamente inaceitável.
Fotografia de Bruno Silva
Publicado no Diário As Beiras de 1/7/2017