Não sei dizer em que momento, no imaginário de uma parte importante da esquerda ocidental, a ideia de uma Catalunha independente ganhou um lugar próprio e claramente positivo. Talvez a procura dessas raízes possa um dia tornar-se assunto para uma tese académica. Mas é evidente que o papel ocupado pela região catalã na história do movimento operário do século XIX, e depois na memória heroica da Guerra Civil espanhola, representou a dada altura um fator importante para essa entrada, a par de Cuba, do Vietname, da Palestina, da Irlanda do Norte, do País Basco ou das antigas colónias portuguesas, no panteão onde se encontram os casos de um «nacionalismo justo». Totalmente diverso daquele outro, usualmente defendido pela direita política e assente na ideia de Pátria, que não fala em nome dos povos, mas sim das elites dirigentes.
Em Homenagem à Catalunha, de 1938, George Orwell abordou o seu perigoso e traumático encontro, enquanto combatente republicano, com o estalinismo, mas falou principalmente da bravura de um tempo e de uma gente que conheceu e com quem se bateu contra a besta franquista, procurando conservar a sua liberdade, a sua dignidade, a sua língua, a sua cultura. A partir dessa época, o ódio a Franco passou em muitas consciências pelo apoio a todos aqueles, como os sublevados catalães, que faziam da resistência ao centralismo de Madrid um modo particularmente legítimo e ajustado de o combater. Como português, a este fator, o anticastelhanismo visceral, nascido com a Guerra da Restauração de 1640-1668 – onde foi fundamental a resistência conjunta dos catalães diante de Madrid –, e proposto desde a instrução primária pelo Estado Novo, terá juntado um motivo suplementar para encontrar na Catalunha um elo de proximidade e simpatia.
Visitando os arquivos da imprensa, pode rever-se a cumplicidade com a qual os jornais portugueses menos favoráveis ao regime relataram em 1968, apesar da censura, o facto de o barcelonês Joan Manuel Serrat ter sido avisado pelo governo de Madrid de que deveria apresentar-se em Londres, no Festival da Eurovisão, cantando «na língua de todos os espanhóis» e de se ter recusado a fazê-lo. Lembro igualmente a maneira como, apesar da língua catalã ser incompreensível para a maioria dos portugueses, parte da oposição ao Estado Novo escutava, com intensa simpatia, cantores como Lluís Llach, Pi de la Serra ou Maria del Mar Bonet, cujas gravações se trocavam e se tocavam escondidas dos ouvidos da PIDE. E no futebol a esquerda apoiava inequivocamente o «Barça», pelo seu fogoso e obstinado antimadrilismo, identificado também com o antifranquismo.
Todavia, o atual movimento independentista catalão é mais complexo e, em boa parte, de uma outra natureza. Partindo de um princípio e de uma causa autonomista mais do que justos, ele foi, em boa parte, gradualmente caindo nas mãos de uma certa oligarquia regionalista, para quem a Catalunha livre, republicana, socialista e igualitária, desde há muito proposta pela esquerda, não parece querer dizer grande coisa ou ser objetivo prioritário. Apoia-se antes num sentimento partilhado e com profundas raízes para alimentar alguns interesses locais e escapar ao drama social que as restantes nacionalidades incluídas no Estado espanhol estão a viver.
No final dos anos oitenta, em viagem pelos arredores de Barcelona, perdi-me e fui dar a uma aldeia na qual apenas se falava catalão. Uns velhotes que jogavam cartas numa taberna, a quem pedi ajuda, sabendo-me português e por isso tomando-me por cúmplice, ofereceram-me um copo de vinho tinto e ovos com presunto, e só me indicaram o caminho de volta depois de falarem o seu ódio a Madrid. Gostava de saber se os seus filhos e netos veem com esperança o movimento em curso, no qual parecem misturar-se um imperativo coletivo autonómico plenamente justo – que até poderia encaminhar-se para uma solução federalista, como parece sugerir a evolução natural da Europa – e algum oportunismo nacionalista imposto pelas elites. O qual, ademais, de acordo com as mais recentes sondagens, não parece sequer integrar uma clara maioria de apoiantes.
As dicotomias habituais – esquerda contra direita, integracionistas contra nacionalistas, monárquicos contra republicanos, castelhanos contra catalães – não funcionam agora da forma linear que tomaram no passado. É tudo mais complexo, ambíguo, contraditório. Mas nada se resolve fazendo de conta que «no pasa nada» e procurando impedir um referendo que será sempre clarificador.
Publicado no Diário As Beiras de 23/9/2017. Versão ligeiramente ampliada.