É nos momentos mais duros e difíceis da vida coletiva que se pode ver a grandeza daqueles que nela assumem as maiores responsabilidades. Mas também a torpeza de alguns deles. Sob a tirania, em condições de guerra ou quando ocorrem catástrofes naturais, há sempre os que se unem, muitas vezes a partir de posições e de escolhas diversas, ou mesmo contrárias, para, diluindo momentaneamente as maiores diferenças, superar da melhor maneira possível aquilo que a todos atingiu. Em França, o combate clandestino da Resistência contra o invasor nazi constituiu um exemplo histórico maior dessa grandeza, aproximando os franceses amantes da liberdade e da terra-mãe, de comunistas a conservadores patriotas, para lutarem por esse bem maior que era a derrota militar do ocupante.
No contexto da terrível calamidade dos incêndios e da enorme destruição de vidas humanas e de bens que estes provocaram em Junho e agora neste Outubro, a interpretação das circunstâncias, dos factos e das respostas pode e deve, naturalmente, ser objeto de escrutínio. Erros existiram, ao longo de anos e de décadas, na gestão das florestas e dos mecanismos de prevenção, e na gestão deste momento mais crítico também alguns foram cometidos. É impossível, sob o efeito da inesperada desgraça, agir sempre de forma inteiramente certa e segura. E tudo o que aconteceu pode e deve merecer um debate e uma intervenção adiados desde há muitos anos por sucessivos governos de diferente orientação partidária.
Porém, é de todo inaceitável o modo como um determinado setor associado às atuais direções dos partidos da direita parlamentar e apoiado pelas televisões e pela maioria dos jornais, transformou a catástrofe, as mortes, a destruição, a dor e o medo das pessoas em agressiva arma de arremesso político e em fator de instabilidade. Justamente quando, perante tamanha adversidade e face à compreensível comoção humana que a acompanhou, mais preciso era encontrar uma resposta coletiva, um esforço de acalmia e um clima de serenidade possível, de modo a enterrar os mortos, a cuidar dos vivos e, como se impõe, a tomar medidas.
Precisamente quando escrevia esta crónica, chegou-me uma espantosa frase, acabada de pronunciar na Assembleia da República, quando da entrega da moção de censura ao Governo, pelo deputado Nuno Magalhães, do CDS. Ela ficará por certo nos anais da demagogia mais infame: «Cabe ao PCP, ao PS e ao BE avaliarem se a morte de 100 pessoas não é grave.» Apesar dela ser de iniciativa pessoal, é a expressão extrema de uma atitude própria de quem confunde a mais abjeta chicana política, que não se importa de jogar com a morte, a dor, o medo e o desamparo de tantas pessoas, para conseguir, através da manipulação da opinião, derrubar um governo legítimo. Ademais quando este, nas frentes essenciais da governação, tem obtido claras e sucessivas vitórias, traduzidas em sondagens públicas repetidamente favoráveis.
O ensaísta e escritor alemão Hans Magnus Enzensberger observava em 1994, em Perspetivas da Guerra Civil, a agressividade, aparentemente inexplicável, dos grupos de jovens marginalizados pelo sistema que, no coração das principais cidades dos países industrializados, estavam a banalizar uma violência social até então desconhecida na Europa. Temos visto como essa marginalização ampliou clivagens sociais na origem de alguns dos mais graves problemas que hoje tocam o continente e o mundo. O que é particularmente preocupante é que, em Portugal, é de dentro de alguns dos partidos políticos formalmente integrados na democracia representativa que está a ser lançada a semente do desentendimento e da violência. As estratégias de conflito, usadas na Europa pela extrema-direita, têm entre nós assento na Assembleia da República, revelando o verdadeiro rosto de quem lhes dá corpo.
Fotografia de Alex Gaidouk
Publicado no Diário As Beiras de 21/10/2017.