As humanidades (a literatura, a história, a filosofia, as artes, a teoria musical, entre outras), e também, ainda que em escala só ligeiramente menor, as ciências sociais (como a sociologia, a psicologia, a antropologia, a ciência política ou o direito), fazem parte daquele território de saberes e de modos de reconhecer o mundo que tem vindo a ser crescentemente desvalorizado nas sociedades assentes no poder do dinheiro e no fetiche da produtividade. Longe vai o tempo do prestígio e da influência política do «homem de letras» – quando quase apenas homens as possuíam – e da intervenção dos intelectuais.
Tendo o ser humano como objeto, as humanidades encaram o pensamento e a produção de conhecimento sob uma perspetiva que não é meramente utilitarista. O seu interesse não pode, pois, medir-se no imediato, pelo que produzem no plano material, valendo antes pelas capacidades que desenvolvem nos indivíduos e, por extensão, nas possibilidades que introduzem nas sociedades que os integram. Por isso, muitos governos voltados para escolhas estritamente monetaristas têm vindo a desvalorizá-las, impondo políticas públicas que crescentemente lhes reduzem apoio e visibilidade. Nos últimos anos com o apoio dos meios de comunicação de massa, que lhes têm vindo a retirar espaço, crédito e visibilidade.
Ensinando numa escola de humanidades, sinto muitas vezes o dever de retirar essa carga depreciativa dos ombros dos alunos. Como eles escutam agora, também eu ouvi dúzias de vezes a frase depreciativa «letras são tretas», e sempre tomei essa declaração de deslustre como um desafio à capacidade para provar o contrário, comunicando uma mensagem de tenacidade e de coerência. Recentemente, para incentivar a autoestima, comecei a usar nas aulas uma frase da filósofa e feminista nova-iorquina Martha C. Nussbaum, incluída em Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities, de 2016. Pela clareza e capacidade de síntese, ela adequa-se na perfeição à abordagem do tema numa perspetiva pedagógica.
Escreveu ali Nussbaum que «as humanidades transmitem valores fundamentais como democracia, imaginação, criatividade, capacidade de empatia e pensamento crítico», e eu não poderia estar mais de acordo. Vamos por partes. Seja qual for a forma que tome, a democracia requere conhecimento e sensibilidade, para que possa ser exercida de um modo informado e completo. A imaginação, como capacidade humana que nos faz ir além da mera repetição, exige saber e o treino da reflexão para que possa ser dinâmica. A criatividade, por sua vez, implica a sabedoria do passado e da experiência, sem os quais não é possível gerar o novo e é possível o retrocesso. Já a capacidade de empatia é aquilo que nos humaniza, nos aproxima dos outros, partilhando os seus medos, experiências, esperanças e destinos, e nada disso se obtém sem o património, oferecido pela leitura e pela especulação, que é o grande legado das humanidades.
O essencial, que coroa e permite superar este conjunto de possibilidades é, porém, o pensamento crítico. Este usa o conhecimento, que não se imita a memorizar, e a inteligência, que encara sempre de forma ativa e contínua, para analisar e avaliar a consistência dos raciocínios e das afirmações, interagindo com estes numa dimensão de autonomia e liberdade que recusa qualquer teoria ou autoridade como certa e indubitável. É o pensamento crítico que permite evitar a estandardização e o conformismo, promovendo dinâmicas de transformação que tendem sempre a melhorar a apreensão pessoal do mundo e a vida coletiva. Possui, por isso, uma força subversiva colocada no melhor sentido possível do termo, pois é ele que permite enfrentar a injustiça.
E são, de facto, as humanidades que em boa parte lhe conferem capacidade e consistência. Faz agora três décadas, no ainda estimulante Discurso sobre as ciências, Boaventura de Sousa Santos lembrou que o seu valor, e o seu futuro, a razão pela qual serão sempre insubstituíveis, advém do facto de «terem resistido à separação sujeito/objeto e terem preferido a compreensão do mundo à manipulação do mundo». Situando a cada um e a todos numa situação de autonomia e de liberdade que nenhuma outra dimensão do conhecimento tem condições para oferecer.
Fotografia de Miroslaw Hobora
Publicado no Diário As Beiras de 16/12/2017. Versão ligeiramente revista.