Para não ser mal interpretado logo no primeiro parágrafo, esclareço que de modo algum participo da retórica contra os partidos próxima de um certo padrão de senso comum. Determinada pela despolitização ou pela ignorância, e alimentada pelo autoritarismo, ela insiste em tomar a parte pelo todo, acusando-os dos maiores desmandos. Muito pelo contrário, com os defeitos e qualidades inerentes ao humano, considero-os absolutamente indispensáveis ao funcionamento da democracia. Justamente por isso, excluo da sua defesa aqueles que caucionam sem reservas regimes de partido único, pois sem o contrapeso do contraditório estes abrem-se a todas as perversões, transformando-se em instrumentos de coação da liberdade.
Todavia, a atividade partidária de modo algum esgota o funcionamento das democracias, não podendo limitar-se a servir apenas a contabilidade dos votos e a gestão diária da autoridade política nos parlamentos e nas autarquias. Precisa de outras formas de representatividade e de participação dos cidadãos, e precisa também, ela mesmo, de ser espaço para o levantamento de uma opinião crítica e lugar de concentração de vontades predispostas ao serviço público. Os partidos não podem funcionar como abrigo de pactos e de interesses que coagem a liberdade individual dos cidadãos e até a de muitos dos seus próprios militantes, subalternizando de facto a política.
Um partido não é, obviamente, uma sociedade recreativa, onde cada um faz mais ou menos aquilo que quer. Precisa de linha política, programa, estatutos, órgãos eleitos, até de uma história, que lhe definem a identidade e pautam a iniciativa diária, e que lhe conferem também responsabilidades. Mas em momento algum podem estes servir para coagir os militantes a agir contra as suas consciências, silenciando críticas e escolhas ou levando-os apoiar de forma seguidista aquilo de que discordam. Esta prática conduz inevitavelmente, como tem acontecido, ao distanciamento dos que detêm maior autonomia e capacidade crítica, ou que possuem elevados padrões éticos, dando antes destaque aos conformistas, aos acríticos, e, porque ficam com campo livre face à fuga dos mais capazes, aos carreiristas.
Ressalvando as especificidades de cada partido, que entre nós revelam também diferentes qualidades e defeitos, vislumbro algumas formas de contornar a situação. Todas são difíceis de aplicar, dados os vícios instalados, mas acredito que melhorariam o caráter apelativo dos partidos, a qualidade dos seus militantes e a sua capacidade para servir a democracia. Enumero cinco: 1) a institucionalização necessariamente regulamentada do direito de tendência; 2) a liberdade de opinião, mesmo no espaço público, em questões que não vinculem o todo; 3) o reconhecimento da objeção de consciência nos temas mais sensíveis; 4) a dinamização interna e muito livre do debate político, alargado a questões que ultrapassem o imediato ou a próxima campanha; 5) a organização de iniciativas de caráter setorial abertas ao cidadão comum.
Bem sei que tudo isto parece, se não impossível, bastante longínquo. Mas só o é na medida da capacidade de intervenção de quem pode ou não estimular estas e outras mudanças. É um pouco como o conhecido enigma do ovo e da galinha: quem vem primeiro? Pode perguntar-se: quem chega primeiro, uma democratização mais alargada e completa na vida dos partidos ou os melhores cidadãos que através deles se comprometem mais com a coisa pública? A resposta é análoga nos dois casos: vêm ao mesmo tempo, pois um fator não existe sem o outro. E ambos são imprescindíveis.
Um bom 2018 para quem me lê.
Fotografia de José Calheiros
Publicado no Diário As Beiras de 30/12/2017. Versão ligeiramente revista.