Ocultar ou desfigurar o passado para moldar o presente é uma velha prática que dispõe hoje de novas armas. Henrique IV de França ordenou no Édito de Nantes que os episódios das Guerras de Religião opondo católicos e protestantes fossem «apagados e adormecidos como coisa não acontecida», assim procurando rasurar um passado incómodo. O relato da Guerra Civil divulgado na Espanha de Franco impunha a representação de um confronto entre «bons espanhóis» e «perversos republicanos», separando os que mereciam a glória dos que deveriam ser esquecidos. O Kremlin faz agora por apagar a feroz repressão do tempo de Estaline, convertendo este em herói de um destino imperial da Rússia que Putin deseja recuperar. O trabalho de moldagem do passado pode até nem requerer essa intervenção direta do Estado: nas democracias contemporâneas as estratégias são mais insidiosas, sendo muitas vezes os próprios meios de comunicação social privados a disseminar formas parciais ou enganadoras de passado.
Isto leva-nos ao debate sobre os usos e os abusos da memória. O filósofo Paul Ricoeur falava da possibilidade de esta permitir o acesso a uma reapropriação lúcida do passado. Sublinhava também o poder contrário do esquecimento, revelado na sua capacidade para soterrar o que aconteceu. Ao constatar a impossibilidade de tudo recordar, Ricoeur vincava o caráter necessariamente seletivo da memória. Henry Rousso diz que esta é sempre «uma experiência de perda» que o conhecimento histórico tem, tanto quanto o possível, a obrigação de contrariar. Mas se a história se eleva a partir da memória para instruir de um modo mais completo e coerente o entendimento do passado, associando-o a meios de prova e a uma capacidade analítica que o simples rememorar não possui, tal não significa que esteja livre de escolhas discutíveis e de poderosas omissões. Não há uma história pura ou limpa.
É na compreensão deste trabalho de filtragem e depuração que se situa um primeiro nível do chamado «dever de memória», imposto à sociedade, e em especial ao historiador, como obrigação de recuperar o omitido. Inscreve-se assim, no seu trabalho, um conflito permanente entre a vontade de saber e a necessidade de gerir o excesso de informação. Citando ou escolhendo omitir, verbalizando ou preferindo ignorar. Se esta operação passa pela eleição de um olhar, como a do fotógrafo que seleciona a perspetiva, tal definirá positivamente uma nova direção. Existe, no entanto, um segundo nível desse «dever de memória», que comporta uma dimensão moral, associada à necessidade de obter alguma «justiça histórica» para os que o olhar prevalecente insiste ou insistiu em excluir. O passado das vítimas do Holocausto ou do Gulag, como o dos palestinianos ou o dos curdos, como o das mulheres, dos escravos, dos resistentes, dos exilados ou dos refugiados, tem sido confrontado com esta segunda dimensão de «dever».
Situa-se aqui o duelo entre os que defendem, em nome de uma pacificação dos conflitos sociais e políticos, que o que garante a tranquilidade das sociedades é a sua capacidade de esquecer, assumindo que «o que lá vai, lá vai», e aqueles que acentuam o imperativo moral de tudo recordar e historiar. Daí o imperativo, sentido por muitos historiadores, de proceder a uma renovação do passado através da demanda do esquecido ou subalternizado, contornando modelos hegemónicos impostos pelo academismo conservador e pelo eurocentrismo. Eric Hobsbawm reivindicou esta opção, nos anos 60/70, ao estudar os «primitivos da revolta», os esquecidos ou os excluídos, que a generalidade dos seus colegas então omitia ou desfigurava. Enzo Traverso, defensor da história «como campo de batalha», considerou essa escolha «mais frutuosa que a celebração complacente dos vencedores». O «presentismo» em que vivemos, falando do passado apenas para celebrar os vencedores do momento, exige de quem reconhece o valor da memória e da história uma atenção e um combate atentos e obstinados.
Publicado no Diário As Beiras de 27/1/2018. Versão ligeiramente revista.