A ideia da criação do Dia Internacional das Mulheres surgiu na viragem do século XIX para o seguinte, no contexto das suas lutas por melhores condições de vida e trabalho, e pelo direito ao voto. Em agosto de 1910, durante a Segunda Conferência Internacional das Mulheres Socialistas que decorreu em Copenhague, Clara Zetkin propôs a instituição de uma celebração anual das lutas pelos direitos das trabalhadoras. Em 1921, numa reunião que teve lugar em Moscovo, a data de 8 de Março foi finalmente fixada por iniciativa da revolucionária bolchevique Alexandra Kollontai. Em 1975 a ONU adotou a mesma data, hoje celebrada em quase todo o mundo. Porém, mesmo entre os que hoje reconhecem a sua importância existem algumas atitudes equívocas. Destaco aqui três:
A primeira, a mais visível, consiste em transformar a data principalmente numa ocasião para o comércio, colocando muitos homens, na qualidade de consumidores, a despender dinheiro para oferecer prendas que representam muitas vezes a figuração simbólica da própria subalternidade das «homenageadas». Nada contra a oferta de flores, de roupa ou de tratamentos de beleza, obviamente, mas esta pode ser feita em qualquer altura e nada tem a ver com a luta pública das mulheres pelos seus direitos, antes configurando, como meras «homenagens às senhoras», uma essencialização do «eterno feminino», conferindo à «mulher» um papel passivo e ornamental que perpetua os fatores de discriminação e desigualdade.
A segunda atitude comporta algo de insidioso. É exibida pelas pessoas que consideram ter a emancipação das mulheres completado já o seu caminho ou atingido os seus limites na maior parte do mundo, não havendo, pois, lugar a grandes preocupações, a novas causas ou a renovados alertas e combates. Ao centrar-se nos direitos formais consagrados na lei, esta atitude faz baixar as guardas e pactua com os inúmeros casos de disparidade no tratamento – bastará recordar a diferença salarial, a descriminação no trabalho ou o assédio –, ou mesmo de ausência real de direitos e de prática da violência física, que permanecem uma constante em toda a partes, em especial fora dos Estados onde a desigualdade está formalmente consagrada na lei, e dos territórios sociais e culturais mais favorecidos.
Já a terceira atitude, apesar de menos percetível, é perigosa por funcionar como um cavalo de Troia dentro do próprio combate pelos direitos das mulheres. Ela congrega as pessoas que se declaram pelos direitos das mulheres, mas fazem questão de se proclamar «não-feministas» ou mesmo «antifeministas». Neste campo pode encontrar-se também um grande número de mulheres, muitas delas cultas e que convictamente se consideram emancipadas, bastantes vezes colocadas até em lugares de destaque social e político, mas que exibem esta atitude por terem dos feminismos, do seu alcance, da sua pluralidade e da sua história, bem como dos seus atuais combates, uma conceção desinformada e porventura caricatural.
Não deveria ser preciso, mas vale a pena recordar: ser mulher e feminista de modo algum é «ser contra os homens», não é detestar que lhe ofereçam flores, não é descurar o espaço da casa, não é rejeitar a maternidade, não é tratar mal namorados e companheiros, não é ser necessariamente lésbica ou ter uma vida sexual promíscua, não é sequer, num certo sentido, ser «pouco feminina» ou «menos mulher», embora existam mulheres feministas, tal como outras que o não são, que possam praticar tudo isso, como existem pessoas, politicamente de esquerda ou de direita, que se diferenciam, e muito, de outras com quem partilham as mesmas convicções. Um feminismo sem diversidade, e até sem a pequena componente radical – e por isso falamos de feminismos no plural – seria, aliás, redutor.
Na verdade, a celebração do Dia Internacional das Mulheres comporta também um combate contra estes três preconceitos, assumidos por quem o aceita formalmente como uma data a evocar, sem, todavia, o reconhecerem na plenitude do seu significado profundamente político e do seu importante valor simbólico.
Rui Bebiano
Publicado no Diário As Beiras de 10/3/2018.