Poderia abordar este assunto de outra forma, mas dada a polémica na qual acabei por me ver envolvido, terá de ser assim. No dia 3 de Março, na sequência das notícias sobre o convite feito a Pedro Passos Coelho pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), da Universidade de Lisboa, no sentido de o ex-primeiro-ministro passar a ensinar ali como professor catedrático convidado, deixei no meu mural do Facebook uma curta nota. Transcrevo-a na íntegra:
«Nada tenho contra a possibilidade de um ex-governante lecionar numa universidade. Independentemente das suas escolhas políticas. Nada tenho contra o acesso especial à carreira universitária, inclusive em lugares do topo, a pessoas de reconhecido mérito, cuja experiência e obra, ainda que desenvolvidas noutros lugares que não a sala de aula, possam acrescentar algo em termos de conhecimento ou de real prestígio para a escola. Ora é aqui que bate ponto no caso agora em apreço: sem formação, mérito ou reconhecimento não faz sentido, a não ser por nepotismo, o convite dirigido pelo ISCSP a Passos Coelho. É uma desonra para uma escola pública, e uma afronta para quem, no sistema universitário, tanto dá ao longo da vida subindo custosamente a pulso, ou nem sequer o consegue fazer devido ao rigoroso limite de vagas.»
Albert Camus associa a moral, que considera «ciência do bem e do mal», a uma teoria da ação que fixa os deveres de quem age e impõe uma preocupação com a sua conduta. Conferia-lhe uma profunda dimensão política, uma vez que quem se confronta com o problema da escolha o faz em sociedade, funcionando as suas atitudes como exemplo tendo repercussões no coletivo e no modo como este avalia o que está certo e o que está errado. É neste sentido que penso existir neste caso uma dupla questão de moral a considerar. A primeira a propósito do episódio em si, e a segunda sobre o modo como a polémica suscitada é exemplo de uma prática do trabalho jornalístico que se tem vindo a instalar e merece ser encarada de forma crítica.
Em relação ao primeiro aspeto. O problema com Passos Coelho não é de natureza legal, pois a figura do convite existe para obviar à necessidade de contratar professores fora da carreira universitária. Mas é de moral. De facto, fazendo parte da escola pública, o ISCSP não pode deixar de reger-se pelo estatuto da carreira docente universitária, que limita a contratação de professores catedráticos a doutorados com obra reconhecida, não considerando a possibilidade de aceitar licenciados com notas medíocres e sem formação reconhecida e obra publicada. É moral também porque as instituições de ensino superior portuguesas têm um grande número de doutorados ao seu serviço que não podem progredir na carreira, ou sequer passar da condição de precários, justamente porque existem limites formais ou escolhas políticas que o dificultam. É ainda de moral porque no caso em apreço é nulo o peso do prestígio científico e intelectual. Quando muito, Passos poderia oferecer a experiência como governante em seminários ou cursos livres, de caráter técnico, que por certo interessariam alguns alunos.
Quanto ao segundo aspeto, associado ao modo como a comunicação social recorre cada vez mais a textos informais publicados nas redes sociais, regresso ao apontamento que transcrevi. No dia 5 de Março um jornalista do DN escreveu um artigo sobre a contratação do ex-primeiro-ministro, identificando como fator de polémica as posições de dois professores universitários, sendo eu um deles. Pareceu-me incorreto, pois não tinha sido ouvido sobre a matéria e a citação truncava o meu argumento, expresso numa breve nota, usando-o como munição para a controvérsia. O pior, porém, estava para vir, e é aqui que se coloca a questão de moral.
De imediato, diversos jornais e estações de rádio e de televisão serviram-se do artigo, simplificando ainda mais as transcrições iniciais, e transformando justamente no seu contrário aquilo que até neste se declarara ter sido dito. Fizeram-no continuando sem ouvir as pessoas que citavam, ou outras com responsabilidades de gestão universitária. No Público, em artigo de opinião, foi até referido, ao invés do que escrevera no parágrafo, que defenderia a «endogamia universitária». Existe um problema de moral pública quando a comunicação social não ouve as partes disponíveis e se limita a replicar, a segmentar, por vezes a desvirtuar, as palavras de outros, não se inibindo, em regra por facilitismo, e em alguns casos por má-fé, de perverter posições de cidadãos apanhados desprevenidos no espaço muito coloquial das redes sociais.
Rui Bebiano
Publicado no diário Público de 13/3/2018.