Lembrou Northrop Frye em The Double Vision que em todas as épocas se constituem «estruturas de ideias, imagens, crenças, juízos pré-concebidos, ansiedades e esperanças que exprimem uma perspetiva da situação humana e de um dado percurso que se encontra a ser percorrido». Essas estruturas tomam frequentes vezes a forma de mito, sempre entendido como uma narrativa muito idealizada, que partindo da realidade a fantasia, procurando assim explicá-la e condicioná-la. Por vezes, quando as circunstâncias fazem com que se esgote essa forma de representação da realidade, define-se um «mito de substituição», apoiado numa outra narrativa, nova ou adaptada, que ocupa o lugar da primeira e procura responder a algumas das anteriores expectativas.
O modelo de sociedade que após a Revolução de 1917 emergiu na antiga Rússia associado à expectativa de uma emancipação mundial dos oprimidos, definiu, a partir da vitória da ideia do «socialismo num só país» proposta no final dos anos 20 por Estaline, a construção de uma experiência de Estado que materializou para muitos milhões de seres humanos a prova de que outro mundo, que não o do capitalismo, era possível. As vias seguidas pelo «país do futuro radioso» foram, assim, apresentadas ao longo de décadas por muitos dos seus defensores como sinais de uma realidade justa e modelar, olhada como um céu na Terra. O mito da sociedade perfeita, traduzido nas imagens idílicas de felicidade e bem-estar que ainda nos anos 80 a revista «Vida Soviética» reproduzia, foi, aliás, reforçado durante a Guerra Fria, que a seu respeito definiu as relações de identificação e admiração como contraponto da desigualdade do capitalismo e do domínio imperial dos EUA.
Os acontecimentos de 1989-1991 fizeram ruir o mito. Não tanto pela possibilidade utópica que ele sugeria e que se manteve e mantém sedutora, mas pelo confronto com uma realidade, de facto desigual e bloqueada, que nada tinha a ver com a imagem positiva que a sua propaganda produzia. O fim da União Soviética e das experiências dos Estados do «socialismo realmente existente» foi um choque para milhões de pessoas, mesmo para inúmeros militantes comunistas, que de repente viram desmoronar-se o modelo no qual se baseava a sua perspetiva da história e se fundavam muitas das suas escolhas políticas.
É neste quadro que pode entender-se o «mito de substituição» que faz com que no mundo de hoje, à falta do original, a Rússia de Putin tenha passado a ser olhada por alguns setores como contraponto da intervenção agressiva da política externa ocidental, em particular da produzida pelos Estados Unidos, o que tem sido reforçado pelas intervenções agressivas da administração Trump. Basta ler os jornais ou circular pelas redes sociais para ver como são muitos os que por ação ou omissão alinham neste logro. Quem tem saudades do muro de Berlim, de uma localização certa e segura dos males da humanidade na exclusiva intervenção do Tio Sam, quem é de tal forma eurocético que se regozija com o fim da Europa enquanto lugar de convivência entre povos que a constituíram, quem considera os direitos e liberdades que definem a democracia como algo de supérfluo, torna-se, assim, pró-russo e pró-Putin.
Como escreveu no Facebook o embaixador Francisco Seixas da Costa, essas pessoas «colam-se hoje ao agente do KGB reconvertido em estadista com ar grave, borrifam-se para os jornalistas liquidados nas noites de Moscovo, para os opositores encarcerados, para as barbáries da Chechénia». Ou aceitam intervenções militares assassinas e ditadores, desde que formalmente «anti-imperialistas», leia-se antiamericanos, como acontece agora com o sírio al-Assad. Ou fecham os olhos à atuação arbitrária da oligarquia pós-soviética em que se baseia internamente o seu poder classista e agressivo. Na visão maniqueia do mundo de quem assim pensa, a América é desde sempre e para sempre o inimigo principal, esquecendo que vivemos hoje um mundo complexo, no qual os ambiciosos inimigos dos povos e das democracias alinham sob diferentes discursos e bandeiras. Também a das «Stars & Stripes», mas não apenas ela. Putin, de facto, não é melhor que Trump.
Versão corrigida da crónica publicada no Diário As Beiras de 21/4/2018.