Em Maio de 68 explicado àqueles que o não viveram, o documentarista Patrick Rotman afirmou ser este «um objeto histórico encerrado, que devemos olhar e analisar como tal». Muito pelo contrário, é possível e mesmo indispensável encarar o «Maio francês» como um dos momentos que conferem sentido aos últimos cinquenta anos da história mundial, permanecendo aberto a interpretações e a efeitos que lhe atribuem uma dimensão singular e permitem considerá-lo, pelo menos por enquanto, como memorável.
O ano de 1968 foi o mais turbulento do pós-guerra, carregado de acontecimentos inesperados, violentos, exaltantes ou trágicos: a ofensiva do Tet no Vietname, o auge do movimento pacifista contra o apoio dos EUA a Saigão, a explosão por todo o lado da contestação estudantil, a afirmação do Movimento de Libertação das Mulheres e do fenómeno da contracultura, a Primavera de Praga, as barricadas de Paris, o assassinato de Martin Luther King e de Robert Kennedy, os protestos de Chicago contra o racismo, a invasão da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, o massacre de 200 estudantes na cidade do México. Neste contexto, o que ocorreu em França poderia ser um episódio sonoro, é certo, mas curto e de limitado impacto; já o não será, todavia, se o olharmos como sinal de um tempo e prenúncio de algumas transformações.
A dimensão complexa do movimento tem levado a que na tentativa de o explicar se diga tudo e o seu contrário, observando-o como sintoma da doença do sistema universitário ou de uma mais geral «crise da civilização», passando pela sua associação à reconfiguração do mapa político tradicional, ao culto juvenil da revolta, à atração do hedonismo, até à luta de classes «de um tipo novo», que supostamente colocava o estudante onde antes se encontrara o proletário. Raymond Aron considerou-o «acesso febril desprovido de objetivo», não mais que um juvenil «simulacro de revolução». Régis Debray viu-o como «contrarrevolução conseguida», impondo o triunfo do consumismo sobre a moral libertária e abrindo a via para o triunfo do neoliberalismo. No sentido oposto, Edgar Morin, identificou-o como «êxtase da História», explosão jubilatória de vitalidade que promoveu «uma viragem dos espíritos e das sensibilidades».
A maioria das leituras tem, pois, desenvolvido um sentido interpretativo que oscila entre o descrédito e o enaltecimento. Pelo meio encontram-se os testemunhos daqueles que viveram os acontecimentos ou o seu tempo, em França ou noutros lugares, e que em regra alternam também entre a exaltação ou o derrotismo. Soixante-huitiard passou a ser sinónimo de nostálgico que vive a romantização do seu próprio passado, indiferente ou crítico de todas as mudanças ocorridas nas últimas décadas. Do lado contrário, os que sempre tiveram dificuldade em compreender o que aconteceu insistem na inscrição do movimento num período de caos e anarquia, espelhado numa cidade à mercê dos rapazes e das raparigas que erguiam barricadas e apedrejavam a polícia em nome de um «realismo do impossível».
Para escapar às armadilhas colocadas pelas diferentes subjetividades e releituras, o caminho a seguir só pode ser o da observação do que pode ser historicamente aferido. Assim, o movimento não foi tão espontâneo quanto parece, uma vez que a intervenção estudantil e a dos grupos políticos começou mais cedo. A sua orientação foi muito diversa, separando-se claramente o ativismo libertário, a intervenção da esquerda mais radical, o papel dos intelectuais e as escolhas do PCF, que só tardiamente aderiu ao movimento, tentando aproximá-lo da luta sindical. O proclamado caos foi mais simbólico que real, pois o mapa físico e social dos acontecimentos de Paris foi circunscrito. No final, o movimento saiu derrotado, com a enorme manifestação gaullista que lhe pôs termo e uma acentuada reafirmação eleitoral da direita francesa – mais de 71% nas presidenciais de Junho de 1969 que elegeram Pompidou –, acompanhada de um enorme recuo da esquerda. Todavia, a impacto da sua dimensão «antidisciplinar», associada à recusa sistémica de um modelo social e cultural até aí hegemónico, lançou sementes que potenciaram novas atitudes coletivas. O conhecido slogan «é proibido proibir» é indicativo da afirmação dos direitos das minorias, da legitimação da diferença, da pluralidade do pensar, do agir, dos modos de viver, amar ou aprender, que foram testados no laboratório do movimento parisiense e da sua projeção mundial, plasmando futuros projetos políticos e modelos de sociedade.
A cinquenta anos de distância, pode dizer-se que ele representou um instante breve, mas ruidoso e memorável, da história contemporânea, potenciador de um certo «espírito» libertário e igualitário que pontuou o tempo e, como declara um editorial recente da revista L’OBS, «permanece um farol, e talvez mesmo um reservatório de recursos, para procurar responder aos problemas do nosso tempo». Jacques Tarnero, que esteve em Nanterre, onde a 22 de Março de 1968 o movimento despertou, chamou-lhe «revolução-ficção», momento e lugar onde por instantes foi possível imaginar e ensaiar um padrão de viragem e de renovação que é o motor de toda a mudança duradoura. Por isso ecoa ainda na consciência partilhada por diversas gerações e não pode ser um caso encerrado.
Rui Bebiano
Saído no diário Público de 10/5/2018.