Um dos aspetos mais chocantes, e também mais perigosos para a sobrevivência da democracia, que nos mostra uma observação externa da situação política brasileira e das eleições presidenciais a decorrer, prende-se com a extrema polarização do sistema político do país, traduzida num grau de cegueira, de intolerância e de ódio que, do ponto de vista histórico, apenas conhecemos em momentos raros e críticos, nos quais, noutros lugares, o sistema político, a vida social e o Estado de direito estiveram à beira do colapso. Não se trata já do confronto entre projetos diferentes ou contraditórios de política e de sociedade apostados na mobilização ou no convencimento do eleitorado, como acontece naturalmente nas democracias de tipo representativo, mas de uma luta sem quartel, na qual um dos lados tem como objetivo central, tanto quanto governar a qualquer preço, o esmagamento do seu opositor, das suas ideias e até do seu estilo de vida.
Não podemos, no entanto, neste panorama dividido, colocar Haddad e Bolsonaro de igual modo nos pratos da balança. É verdade que ambos emergem de uma realidade desde há muitos anos dominada pela gigantesca desigualdade social, por uma insegurança aflitiva e endémica e por uma corrupção absolutamente generalizada, a níveis que, aqui na Europa, apesar de todas as dificuldades, problemas, conflitos e contradições, são hoje considerados quase impensáveis. Na realidade, enquanto o primeiro emerge de anos de uma experiência, sob vários aspetos desastrosa e mal gerida, do PT, que apesar de algumas vitórias foi perdendo boa parte do capital de esperança inicial, sem que com isso tenha sido capaz de revelar suficiente capacidade de autocrítica face aos muitos erros que cometeu, mas que se situa dentro do campo democrático, defendendo uma solução convivial, o segundo defende abertamente o fim da democracia, a desvalorização dos direitos humanos e a imposição de uma ordem pública assente na segregação e na violência exercida pelo Estado.
O que Bolsonaro propõe é uma «apartheidização» do Brasil, com um regresso aos tempos da ditadura, com a aceitação da desigualdade e da repressão como fatores de ordem social. Tudo associado a um programa nulo, sem propostas claras, e envolvido por um discurso demagógico perante o qual a retórica primitiva de Donald Trump parece altamente ponderada e complexa. Tudo num cenário de recorte populista, em boa medida apoiado num imediatismo alimentado pelos média e pelas redes sociais, mas assente também na degradação do sistema político tradicional, agora provada pela completa implosão dos candidatos do centro. Acredito que a possibilidade de sair deste ciclo vicioso sem o regresso pelo voto aos dias negros da ditadura não estará no agudizar das contradições, em gritar ainda mais alto que o outro, mas no oposto. Na capacidade, por parte das esquerdas e do centro político, de unir o que for possível unir à volta do fundamental, cedendo onde necessário, de modo a evitar a vitória da barbárie e a transformação do Brasil num novo Estado-pária. Porque é disto que se trata.
[Originalmente no Facebook]