Começo por contar um episódio ocorrido comigo que já referi em público algumas vezes. Tendo há algum tempo sido convidado para participar num ciclo de conferências-debate sobre o movimento estudantil, fiz aquela que me competiu sobre a «crise de 69», o importante momento do combate da juventude universitária contra o autoritarismo do regime e das autoridades universitárias que aconteceu em Coimbra e do qual se evoca agora o cinquentenário. No final da sessão, num daqueles momentos em que os conferencistas contactam o público, fui abordado por um senhor que me disse o seguinte: «olhe, gostei imenso de o ouvir, mas tenho a dizer-lhe uma coisa: tudo o que disse é mentira, pois eu estive lá e sei que não foi assim.» É claro que tivemos de esclarecer o imbróglio. Fomos beber um café e antes de nos separarmos já essa pessoa me dera razão: «afinal estive lá, mas não vi certas coisas e não fiz algumas ligações».
Regressarei no final a este episódio, mas antes preciso tecer algumas considerações sobre as dificuldades colocadas, na perspetiva da história, à abordagem de acontecimentos próximos e dos quais existem testemunhos vivos. Nos anos 70, quando começou a desenvolver-se em França, no meio académico, a chamada «história do presente», o problema que se punha era tratar, sob a perspetiva dos historiadores, os acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, então apenas examinados por jornalistas, políticos, escritores ou alguns raros memorialistas. Uma dessas dificudades prendia-se com a proximidade dos eventos, para alguns profissionais da História condição de uma inevitável subjetividade. Um problema que é real, embora não menos que aquele posto aos documentos escritos (basta que nos lembremos da frágil «objetividade» contida na ata de uma reunião). Outra dificuldade era posta pela emoção da testemunha, que obscureceria a análise. Outra ainda prendia-se com a impossibilidade de se produzir um distanciamento temporal capaz de permitir uma interpretação mais completa e perspicaz.
Existia sobretudo um enorme equívoco entre aqueles que rejeitavam a história do presente: consideravam que quem a praticava não usava a metodologia de análise documental e os meios de prova dos historiadores dos outros períodos, transformando a história em instrumento de um desprezível presentismo. Esta é uma categoria de análise do tempo, criada por François Hartog, segundo a qual passado e presente desaparecem como referentes da experiência humana, seja esta pessoal ou coletiva, dado passarem a valer apenas pelo modo como são compreendidos na atualidade. Só o presente ficaria assim como bússola de orientação do percurso humano, sendo o passado entendido como realidade incerta, sem lições a dar. Ora a história do presente não é nada disto: ela interpreta o passado (por isso mesmo é história, e não romance) e fá-lo em relação a um tempo próximo (cada vez mais fugidio, tendo em conta a crescente velocidade da informação e as atuais dinâmicas da memória), mas fá-lo num processo de leitura que não dispensa a crítica atenta e comparada dos documentos (escritos, orais, imagéticos, sonoros, etc.). Além disso, o seu interesse advém também de delinear uma arqueologia do presente: partir do passado para saber como se chegou a à atualidade, ou vice-versa.
Retomo então o episódio aludido no primeiro parágrafo. O que aconteceu naquela conferência, proporcionando o referido equívoco, foi que abordei um acontecimento do qual existiam testemunhas presentes – aliás, chegado a Coimbra para concluir o secundário no ano de 1969, eu próprio fui uma delas – na perspetiva própria do historiador. Isto é, com instrumentos de análise, o exame de informações objetivas, acesso a fontes plurais, contextualização nacional e internacional e ainda o esforço possível de objetividade próprio de quem tem esta profissão. No caso em apreço tenho, pois, uma perspetiva da «crise de 69» que a situa num quadro mais completo daquele vivido por quem nela participou, mas não a lê de forma exaustiva. Inevitavelmente diverso de quem dela «ouviu falar», repetindo ideias-feitas transformadas em mitos. Sublinhe-se, porém, que a leitura de quem a situa historicamente, libertando-a de equívocos, de modo algum a desqualifica. Pelo contrário reforça até o seu grande valor como parte dinâmica do nosso património democrático. Este será assunto para outra crónica.
Rui Bebiano
Fotografia: Coimbra, abril de 1969 (Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra)Publicado originalmente no Diário As Beiras de 6/4/2019