Durante cerca de três décadas dei aulas sobre a dimensão cultural, política e vivencial do romantismo oitocentista. Começavam invariavelmente por procurar diluir a conceção do romantismo tardio, ou ultrarromantismo, que transformava o conceito numa expressão doentia – sob a forma de sentimento aparentemente dócil e contemplativo, mas traduzida em gestos por vezes bárbaros – da posse de alguém por outro alguém. Em regra, de uma mulher por um homem, embora pudesse ocorrer o contrário, ou pudesse também acontecer algo de menos convencional.
Depois mostrava que o verdadeiro romantismo pouco tinha disso. Era antes exaltação, heroísmo, liberdade, rebeldia ou rebelião, valorização do sujeito, jogo, autonomia da vontade, fusão da pessoa com a mudança do mundo. E também que, apesar de maioritariamente masculino – não esquecer que as circunstâncias eram outras – dera também lugar a inúmeros momentos de emancipação de mulheres. Como seres autónomos, como pessoas, já que como movimento coletivo, orgânico, até ao final de Oitocentos não existia ainda qualquer vislumbre de feminismo. Mostrava também como uma boa parte da idealização do feminino pelos homens e pelas mulheres do romantismo, apesar de hoje totalmente ultrapassada e insustentável, foi na época um instrumento de valorização das mulheres como seres humanos autónomos e até independentes dentro de uma cultura hegemonicamente masculina. Apesar de em algumas variantes elas serem também diabolizadas pelos homens românticos com medo da sua influência. Devo ter passado este testemunho a umas cinco mil pessoas, no mínimo.
Eis quando deparo com textos concebidos por estes dias que deturpam tudo isto e procuram agora, a partir do desenvolvimento da caricatura tardo-romântica, utilizada atualmente pelos mecanismos da indústria do consumo, apresentar o romantismo como um mero instrumento de manipulação e de exploração, como meio de ilusão, ou como fator negativo indutor de formas veladas ou implícitas de violência de género. Claro que mesmo aqui se vai a um ponto extremo, considerando-se até a sincera oferta de uma flor ou de um poema, ou de belas palavras de carinho e de elogio, por parte de um homem a uma mulher, como inevitável instrumento de dominação ou de chantagem emocional. Claro também que algumas das pessoas que o defendem terão problemas com a interpretação da realidade e com a sua própria vida, metendo tudo no mesmo saco, mas outras fazem-no por ir atrás de leituras ligeiras e fáceis. Deveriam, pelo menos, informar-se um pouco melhor sobre os conceitos que usam. E sobre a sua história também. O que significa sobre as pessoas que já não existem, mas lhe deram forma.
Muito mais haveria a dizer sobre o tema, incluindo a vertente do amor pela humanidade no seu todo, que na sequência da filosofia das Luzes o romantismo também desenvolveu, bem como sobre o lado oposto da influência romântica na nova forma de entender o amor na transformação das masculinidades. E ainda sobre o binómio romantismo-revolução, ontem e hoje (Marx foi romântico, é bom lembrar). E ainda sobre as cabeças que giram à volta do problema, naturalmente. Assunto que dará sempre para livros inteiros, daqueles bem volumosos. E para filmes e séries. E para longas conversas também. Mas não é aqui o seu lugar.
Imagem: «The Escape», gravura em aço aguarelado à mão, 1862; sobre desenho de J. Browns.