O título desta crónica parafraseia o de um livro do historiador Tony Judt sobre três intelectuais franceses – Léon Blum, Albert Camus e Raymond Aron – com personalidades singulares e percursos muito diversos, mas que coincidiram no sentido exigente da sua responsabilidade perante o mundo. Encararam-na num duplo sentido. Por um lado, sob a perspetiva de quem o observa de maneira informada, razoavelmente liberta dos filtros impostos pelas ideologias, dos modismos e dos lugares-comuns. Por outro, agindo, escrevendo e falando em função das suas próprias conclusões, obtidas através da reflexão e da crítica, e assumindo-as de uma forma pública, ainda que tal os tenha colocado por vezes contra a maioria dos que pertenciam ao seu campo político.
Na verdade, essa é a missão, e ao mesmo tempo o pesado fardo, de quem pensa a realidade e sobre ela se pronuncia convictamente a partir dos seus próprios pontos de vista e da sua sensibilidade, questionando, se necessário, as formas de pensamento dominantes, ainda que tal lhes cause incómodos ou problemas. Esse é o lugar do pensador livre e crítico que em boa parte tem estimulado, nos últimos dois séculos, o combate às iniquidades e a procura de novas formas de sociedade. Muitos foram os e as que por ele sacrificaram a liberdade, o sossego, o bem-estar ou mesmo a vida. Contrária a essa escolha é a do indiferente, ou a do carreirista, que se cala ou se esconde temendo acima de tudo que a menor palavra o possa lesar. No fundo, a diferença crucial entre a audácia e a cobardia, entre ser-se assertivo ou indiferente.
Atualmente, esta distinção confronta-se com um problema novo. O surgimento da Internet e das redes sociais tem permitido a extensão de um tipo híbrido, que sempre existiu de forma marginal, mas tem agora um habitat favorável. Refiro-me ao que fala sem contrangimentos, mas sob anonimato ou usando falsas identidades, o que lhe permite escrever o que lhe ocorrer sem se responsabilizar pela justeza ou pelo sentido do que diz. Naturalmente, isto inquina qualquer debate, banalizando muitas vezes a mentira, a calúnia, o embuste, a insensibilidade ou a simples tolice, apresentados como «opinião pessoal» ou uma expressão de «liberdade».
Alguns dos que assim procedem invocam mesmo o direito a dizer o que lhes vier à cabeça – incluindo a defesa de valores antidemocráticos ou a negação de crimes contra a humanidade – com o rosto coberto por uma máscara ou a identificação adulterada. A propósito, perdoem a imodéstia, refiro o meu próprio exemplo. Sempre dei o nome e a cara, desde que, muito jovem, em 1970 comecei a escrever em jornais, tendo logo o primeiro artigo cortado pela censura. Mesmo sob o anterior regime, como militante antifascista, o que me levou à prisão, ou depois em condição subalterna – como estudante, operário, militar ou jovem professor – jamais deixei de assumir a responsabilidade pelo que disse ou escrevi, ainda que nem sempre o tivesse feito bem ou de forma justa. Apenas usei um pseudónimo conspirativo antes do 25 de Abril e depois um outro, literário, inteiramente assumido. Como norte, sempre uma noção dever social e um imperativo ético que exclui a hipótese do anonimato.
Em democracia, esconder a cara não pode ser senão uma forma de desresponsabilização e uma marca de vergonhosa cobardia. Não é de uma, ou de outra, por certo, que precisamos para construir uma sociedade melhor governada e mais justa. Retornando ao título de Tony Judt referido no início, a responsabilidade pelas escolhas pessoais carrega um peso consigo, sempre vinculado a quem as assume. Resta saber se quem o faz se expõe à luz da vida coletiva ou prefere viver sob as pedras e na sombra, como os répteis.
Rui Bebiano
Fotografia de Bragi ThorPublicado no Diário As Beiras de 4/5/2019