Há poucas semanas, o The New York Times pôs termo à publicação de cartoons. Fê-lo na sequência da polémica em torno de um desenho do português António, que o próprio diário, após queixas de leitores, acabou por aceitar poder ser considerado «antissemita». O trabalho de António tinha sido publicado pelo jornal sem autorização do autor e um dos que se pronunciaram de forma mais violenta contra a sua inclusão no diário foi Donald Trump Jr., o filho mais velho do presidente. O desenho representava o seu pai como um cego vestido de rabino e conduzido por um cão com a cabeça do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu. A crítica dos leitores poderia ser legítima, mas a decisão foi radical. Vinda de uma publicação de bom nível jornalístico e cultural, que tem defendido a liberdade de expressão e é conotada com a oposição democrata a Trump, ela é particularmente chocante e um grave sinal dos tempos.
Nesta altura, de facto, o uso da sátira já não defronta apenas a censura e as ditaduras, ou os que desejam governar sem o embaraço da crítica, mas tem também de combater a ideia perigosa segundo a qual todas as opiniões são legítimas, salvo aquelas que choquem consciências ou belisquem interesses instalados. No contexto, a censura tem campo aberto para se impor e para tolher não apenas a opinião política, mas igualmente a criatividade artística. Aliás, o próprio António pergunta, em declarações ao Público: «como é que um jornal deste nível pode dizer que nunca mais quer cartoons, quando o cartoon está intimamente ligado à história da imprensa e à liberdade de expressão?» Na verdade, esta decisão alarga o caminho para a normalização de um ataque sem precedentes ao uso da sátira.
Cultivada como género pelo menos desde a antiguidade clássica, ela constitui, como se sabe, uma técnica literária ou artística que sob diversas formas escarnece de um determinado tema (figuras públicas, organizações, poderes, acontecimentos, ideias ou crenças). Serve frequentemente como forma de intervenção política, sempre com o objetivo de provocar ou de impedir um certo padrão de mudança, podendo também servir como modo de dessacralizar, ou de humanizar, o tema que aborda. Usa a arma poderosa e indestrutível do riso, aparentemente «despolitizado» – ou instintivo, como defendia Henri Bergson –, e por isso é tão utilizada para combater os regimes totalitários ou ditatoriais. Mas por isso também tem sido tantas vezes manipulada ou perseguida.
Pode existir, é verdade, algum limite para a sátira. Ela perde o valor e até o efeito subversivo se usar como objeto de chacota valores essenciais, ou o sofrimento humano, ou a doença e a morte, ou a opressão, a miséria e a fome, ou os piores efeitos das catástrofes e das guerras. Nessa altura deixa de ser um fator de mudança, transformando-se em agente de agressão social e em incentivo aos piores instintos. Mas essa é a exceção. Normalmente, funciona como instrumento da aptidão humana para a crítica e para a mudança. O seu silenciamento reduz, por isso, a nossa capacidade para exprimir a diferença e para a resistência face a todas as imposições. Sem as quais seremos como os tristes trabalhadores subterrâneos de Metropolis, a cidade de humanos transformados em autómatos, descrita no romance de Thea Von Harbou que em 1927 Fritz Lang verteu para o cinema.
Rui Bebiano
Fotografia de Jonathan TorgovnikPublicado originalmente no Diário As Beiras de 27/7/2019