Quem se interesse de modo crítico pela história das ideias políticas conhece a ambiguidade que há mais de cem anos acompanha o conceito de social-democracia. Declarações de Catarina Martins ao Observador, nas quais considerou existir uma dimensão social-democrata no programa do Bloco de Esquerda, trouxeram de novo alguma atenção a esse equívoco, tantas vezes alimentado por circunstâncias históricas, mas também pelo desconhecimento e pelo dogmatismo. Nada tem isto a ver com o PSD, partido liberal cuja inadequada designação resultou das circunstâncias de Abril, mas antes com os setores que à esquerda olham o conceito com aprovação ou descrédito.
A social-democracia defende a intervenção do Estado na promoção da justiça social, dentro de um sistema económico compatível com políticas de bem-estar, com a iniciativa privada, com o papel dos sindicatos e com instrumentos de regulação económica que promovam uma distribuição mais igualitária dos rendimentos. Define ainda um compromisso inalienável com a democracia representativa. Resultou de lutas travadas dentro da Segunda Internacional operária, fundada em 1889, boa parte a partir do legado de Marx, sobretudo no que toca à apreciação do caráter do capitalismo, das suas perversões e da necessidade da sua superação. Prova do processo contraditório pelo qual passou foi o confronto de Lenine e do seu Partido Operário Social-Democrata Russo, o futuro Partido Comunista, com outro segmento da social-democracia. Boa parte do descrédito da designação resulta, aliás, deste conflito.
No último século a trajetória da social-democracia manteve-se complexa, cada vez mais associada aos setores que privilegiavam inequivocamente o papel do reformismo político e da democracia representativa. Do outro lado, estavam aqueles, sobretudo inspirados na experiência da Revolução de Outubro de 1917, que preferiam um movimento revolucionário, conduzido por uma vanguarda, que após a tomada do poder definisse um sistema centralizado capaz de impor a nova ordem socialista. De alguma forma, «social-democracia» e «socialismo» passaram a opor-se, defendendo a primeira a superação gradual do capitalismo e propondo o segundo a sua rápida destruição e substituição.
A partir desta distinção, o historiador Tony Judt considerou que o socialismo «sob todas as suas múltiplas formas e encarnações com hífenes, falhou», enquanto a social-democracia «não só chegou ao poder em muitos países, como foi além dos melhores sonhos dos seus fundadores». Todavia, alertou também para que esta dicotomia não deve ser interpretada de forma literal, pois o que de positivo as experiências da social-democracia ofereceram, cingiu-se, embora isso não seja de pequena monta, à elevação das condições materiais e da qualidade de vida da maioria dos cidadãos, não sendo, todavia, um modelo de aplicação universal e perpétuo. Nomeadamente em tempos de retração, como aqueles que temos vivido nas últimas décadas.
No Tratado Sobre os Nossos Atuais Descontentamentos (Ill Fares the Land, de 2010, ano da sua morte) Judt escreveu: «Em finais do século XX, a social-democracia na Europa tinha cumprido muitos dos seus objetivos políticos de longa data, mas em grande parte esquecera ou abandonara a sua fundamentação original», passando a assentar a sua atividade em alianças interclassistas que reuniam operários e camponeses, mas também, e cada vez mais, trabalhadores dos serviços e setores da classe média, tendendo a rejeitar as escolhas que perturbassem esse equilíbrio. Seria justamente o abandono da sua fundamentação original a colocar a social-democracia num impasse, bem traduzido nas políticas de Terceira Via dos anos 90 – com Tony Blair como rosto principal – que quase destruíram a identidade e o papel de muitos dos partidos socialistas ou social-democratas herdeiros do movimento emancipatório vindo de Oitocentos.
O que os defensores da parte dinâmica e saudável da tradição social-democrata hoje defendem não é, pois, a continuidade da conciliação com o capitalismo, mas, sob condições sociais e técnicas inteiramente novas, um regresso à matriz socialista, embora na firme recusa de sociedades coletivistas, apoiadas no esmagamento da liberdade e do indivíduo, desacreditadas pela história recente. Se foi para isto que Catarina Martins apontou na sua resposta, terá a minha compreensão e a minha simpatia.
Fotografia de Jonathan Nackstrand/AFP (Estocolomo, 1º de Maio de 2018)Publicado no Diário As Beiras de 7/9/2019