Começo por me colocar totalmente de fora do ambiente de recriminação, ressentimento e preconceito que tem envolvido esta nova fase da vida do Livre e o problema com a prestação política da Joacine Katar Moreira. Não é atitude que me interesse, até pelo tom de desproporcionada violência, alguma dela muito personalizada, que o tem envolvido. Quero também, antes de ir ao problema que pretendo tratar, deixar dois lembretes que julgo necessários.
O primeiro liga-se ao momento em que, no início desta infeliz situação, tomei a defesa pública da JKM. Fiz aquilo que pensei dever fazer, que foi defendê-la publicamente da vaga de preconceito centrado no problema com a fala, no facto de ser mulher e na cor da pele. Voltaria a fazê-lo nessa mesma direção, se tal fosse necessário. Mas tinha-me apercebido já de alguns problemas com uma parte das suas escolhas e prioridades, voltadas para a sobrevalorização sectária de certas causas em detrimento de outras, subvalorizadas ou mesmo ausentes do seu discurso, apesar de não menos importantes no programa do Livre.
O segundo lembrete tem a ver com a minha relação com o próprio Livre, que posso circunscrever a dois momentos. Logo no início, fui das pessoas que, quando o partido foi legalizado, apôs a sua assinatura entre aqueles milhares das necessárias à sua formalização. Fi-lo apenas porque me pareceu, e continua a parecer, ele poder preencher um espaço não inteiramente ocupado no espectro plural da esquerda. O segundo momento, sem dúvida mais importante, foi quando, nas eleições legislativas de 2015, fui candidato independente no projeto político de cidadania ativa que em boa parte envolveu o Livre, tendo embora outras correntes presentes, entre as quais me contava.
Nessa altura tive um contacto mais direto com pessoas do partido, e com formas de organização que este levou para o projeto. Um e outro dos aspetos criaram-me logo algumas dúvidas, que relevei no momento em nome do coletivo. Por um lado, encontrei no partido uma percentagem enorme de pessoas despolitizadas, ou politizadas há pouco tempo. Se isso teve a vantagem de trazer gente nova, muita dela bastante jovem, para a política ativa, por outro lado produziu uma manta de retalhos algo pantanosa e difícil de gerir. Além disso, discordei desde o início da ausência de uma direção política efetiva e da escolha dos deputados com base em eleições internas abertas, que poderiam incluir, como votantes e como eleitos, pessoas que nem sequer estavam inscritas no projeto.
Dou dois exemplos de resultados possíveis. Repito este dado: estávamos em 2015. Primeiro: no círculo do Porto foi eleito como primeiro candidato um cidadão que manipulou votos, tendo sido necessário recorrer a mecanismos jurisdicionais internos para o impedir de concorrer (e justamente, pois nem um programa de vínculo ao projeto coletivo exibia). O segundo exemplo passou-se comigo próprio: fiquei em segundo lugar nas eleições internas no círculo de Coimbra, transitando para terceiro na lista de candidatos para assegurar a alternância de género, apesar de nem de longe ser dos mais ativos no processo. Creio que só terei sido eleito para o lugar por ser dos cidadãos mais conhecidos entre o leque dos possíveis. Não, de modo algum, por ter sido dos que se envolveu mais intensamente naquele momento político.
Chegado aqui, o que poderia ter a escrever já o fez há quase dois dias, no Expresso, o Daniel Oliveira, pelo que me limito a apoiar a sua discordância com os processos de organização do Livre que, como acabamos de verificar, permitem a candidatura de pessoas que podem ter, mais que a agenda do partido, uma agenda pessoal ou de grupo. Nestas condições, acontecer aquilo que está a acontecer será sempre inevitável. O Livre, onde tenho amigos e reconheço, insisto, um papel próprio a desempenhar na nossa democracia, tem de escolher se quer permanecer neste sobressalto constante ou se pretende apresentar-se aos cidadãos com um programa próprio, que comprometa o partido e não dependa da personalidade mais estável ou mais instável dos candidatos e das candidatas que apresenta a escrutínio público.