O tema foi debatido há semanas com bastante mais paixão que razão, quando da aprovação no Parlamento Europeu de uma moção que equiparava nazismo e comunismo como de natureza igualmente criminosa e condenável. Por iniciativa do CDS, Iniciativa Liberal e Chega, a Assembleia da República prontamente discutiu um voto de aplauso à deliberação saída de Bruxelas. As bancadas da esquerda reprovaram-no por entenderem, com toda a justeza, que o paralelo estabelecido branqueava o nazismo. Todavia, o assunto é complexo e justifica alguma atenção, tanto pelo sentido histórico do paralelo, quanto pelos objetivos que a decisão visou.
A comparação tem largas décadas de existência e tem sido adiantada, com diferentes contornos, tanto no território da política quanto no mundo académico. Em 1999, o historiador Henry Rousso organizou um conjunto de estudos sobre o tema, onde foram inventariados aspetos comuns como «o lugar do ditador, as modalidades da violência política, as respostas sociais à iniciativa totalitária». Não foi, contudo, uma vontade de compreensão que fez com que a semelhança dos processos fosse agora levantada: na verdade, têm sido os partidos de direita e de extrema-direita que mais têm insistido nessa «semelhança», aproveitando-a para desenvolver junto dos eleitorados uma retórica anticomunista, antissocialista e essencialmente antidemocrática.
Não se trata de conceitos ou de experiências idênticos: o nazismo, bem como todos os fascismos, estão associados a ideologias e a regimes segregacionistas, que visam eliminar ou subjugar setores da população – etnias inteiras, minorias nacionais e religiosas, imigrantes e refugiados, segmentos sociais situados fora das elites – enquanto o comunismo é, na essência, um ideal de sociedade solidário, igualitário e justo, sendo esta tripla dimensão que lhe tem assegurado a capacidade dinâmica para sobreviver como proposta com o apoio de tantas pessoas que por ele morreram ou se bateram. Pela mesma razão, um fascista e um comunista de modo algum podem ser comparados na perspetiva que têm da sociedade e nos objetivos da sua atuação enquanto cidadãos.
É verdade que nos Estados autodesignados como do «socialismo realmente existente» se estabeleceram formas de repressão política, censura e engenharia social opressivas e que vitimaram largos milhões de pessoas. Principalmente na China de Mao e na União Soviética de Estaline, com as suas instituições de coerção física e política, e os seus gigantescos sistemas concentracionários. Mas a legitimidade que fascismo e comunismo impuseram para defender essas escolhas foi radicalmente diversa: enquanto nas experiências dos Estados socialistas o objetivo nuclear era reeducar o dissidente para produzir um «homem novo», na experiência nazi era eliminar o pária, higienizando a sociedade da sua presença. Poderá argumentar-se que para as vítimas de ambos os sistemas o resultado prático foi o mesmo – a exclusão, o medo, o sofrimento extremo, a morte –, no entanto, para as pessoas que apoiavam os regimes que lhe davam corpo, o sentido das escolhas era profundamente diverso, ou mesmo oposto.
O problema real passou pelo estabelecimento, nos Estados socialistas, de regimes de partido único, progressivamente burocratizados e em larga medida assentes no exercício da violência como instrumento de poder. Neles, a algumas conquistas em domínios importantes, corresponderam sistemas repressivos, em regra tirânicos, e sistemas económicos bloqueados, que impuseram situações de sofrimento intenso e de exclusão às populações. Sendo essas práticas impostas pelos partidos no poder, com a cumplicidade da maior parte do movimento comunista internacional, tal significou a existência real de uma dimensão de opressão e crime, ainda que diferenciada de acordo com as épocas e as geografias; porém, de modo algum ela pode ser equiparada àquela posta em marcha pelo nazismo, e proposta de uma ou de outra forma pelos diversos fascismos.
A necessidade da parte da esquerda que ainda não fez esse esforço de auto-análise encarar sem complexos o peso dessa experiência, incluindo o dos crimes cometidos, assumindo uma dinâmica que não negue, mas exclua de todo, as escolhas autoritárias do passado, poderá ajudar a esvaziar as comparações absurdas estabelecidas de forma oportunista pela opinião de direita. Será também uma maneira de exorcizar fantasmas, mobilizando-se e mobilizando no combate por uma vida melhor, mais justa, mais solidária, mais feliz e mais livre. Como, desde a sua formação no decurso do século de Oitocentos, o configurou a utopia comunista.
Rui Bebiano
Fotografia de Nikola Mihov, da série «Forget your past»Publicado originalmente no Diário As Beiras de 14/12/2019 (versão revista).