Nos 60 anos da morte de Albert Camus.
O escritor húngaro Imre Kartész, antigo deportado de Auschwitz-Birkenau, resumiu numa frase curta a afeição imediata e duradoura por Albert Camus: «Amei imediatamente a sua liberdade, mas também a sua insolência». A par do impacto da voz literária, as marcas de independência e de insubmissão do autor de Os Justos têm sido determinantes para manter um poder de atração, uma irradiação de heroísmo e resistência, que têm cruzado diferentes épocas e circunstâncias. Eclipsadas as grandes narrativas do tempo histórico, muitos dos que foram perdendo as certezas acolheram com agrado aquela que foi, como escreveu nas memórias Maria Casarès, o amor de muitos anos, «a sua paixão pela justiça e pela verdade». A dilatação desta influência tem sido, no entanto, diretamente proporcional às incompreensões mantidas dentro do território político ao qual pertenceu.
Alguns dos seus personagens são modelos de egotismo e desapego pelos outros, mas o mesmo não se passou com o seu criador. Um Camus solidário apoiou os republicanos contra Franco e opôs-se à ocupação alemã («comecei a guerra como pacifista, terminei-a como resistente», anotará um dia). Em 1935 tornou-se militante do PCF, de onde sairia dois anos depois por rejeitar as posições moderadas sobre o fascismo e o colonialismo impostas por Estaline. Desta passagem guardará a desconfiança face ao doutrinamento, a certeza de que a ética individual não pode ceder ao transitório, e a convicção de que a esquerda não tem dono ou procurador. O afastamento aumentará em 1946 com os artigos aparecidos no Combat, sob o título genérico «Ni victimes, ni bourreaux», nos quais denunciou os campos de trabalho soviéticos. E depois com O Homem Revoltado, de 1952, onde exaltou a revolta como instante crítico da emancipação do indivíduo. O caráter libertador desse momento parecia-lhe, porém, ameaçado pela opção revolucionária. Ao instituir a violência e a supremacia do coletivo como uma necessidade, esta arriscar-se-á sempre a subverter e a arruinar o princípio último em nome do qual funda a sua insubmissão.
Esta posição conduziu Camus a um dos gestos mais arriscados da vida, gota de água que determinou a ostracização do universo intelectual então largamente influenciado pelos comunistas. Confrontado em 1957, quando da entrega do Nobel, com a pergunta sobre a explosão de uma bomba lançada pelos independentistas num mercado de Argel frequentado pela mãe, não hesitou: «Se tiver de optar entre a justiça e a minha mãe, escolherei a esta». Depois foi mais longe ainda: «Quando a violência responde à violência num delírio que não tem fim e torna impossível a simples linguagem da razão, o papel dos intelectuais não pode ser, tal como se lê por aí todos os dias, o de desculpar uma das violências e o de condenar a outra». A atitude envolveu-o em pesadas controvérsias, em particular com Sartre e a equipa da Temps Modernes, cujos ataques o esgotaram e deprimiram pela brutalidade e por advirem daqueles que tomava por seus. Retirou-se então dos círculos mais próximos da política partidária, apoiado apenas nos leitores fiéis e no trabalho apaixonado com o teatro. Mas não desistiu da escolha: «Porque decidi não aceitar a matança, condenei-me a um permanente exílio». Uma solidão que só podia ter sido dolorosa, mas permaneceu um grito contra quem combinava a defesa verbal da liberdade com uma inflexibilidade total perante a discordância.
Nos últimos anos, no entanto, o vulto de Camus tornou-se objeto de uma aparente unanimidade. «Escritor de génio», «jornalista de grande visão», «um grande dramaturgo», «imenso pensador», são algumas das expressões elogiosas que têm feito títulos de livros, suplementos e debates públicos. Na Argélia passou há já algum tempo a parte do património nacional. Este reconhecimento alargado pode ser associado a cinco dos temas que regulam a sua atualidade.
A paz é o primeiro deles, porque o mundo atual lembra o seu: guerras, massacres, raptos, assassinato de jornalistas, atentados. «Diante das perspetivas aterradoras que se abrem à humanidade, percebemos cada vez melhor que a paz é o único combate que merece ser travado», escreveu em 1945. Sendo a violência inevitável, entendia que para se lhe reduzirem os efeitos perversos esta deveria ser fortemente criminalizada. Posição inaceitável para o politólogo, o sociólogo ou o historiador que procure reduzir a realidade aquilo que esta «é», desconsiderando o que ela «deverá» ou «poderá» ser, mas já não o era para o militante de uma democracia de matriz profundamente ética como Camus sempre foi.
O segundo tema toma o otimismo como método. Ao contrário do que difundem certos clichés sobre a sua obra, deteta-se nela a todo o instante um poderoso otimismo diante das capacidades regeneradoras do humano. Em 1951, escreveu num dos confessionais Cahiers: «Resposta à pergunta sobre as minhas dez palavras favoritas: o mundo, a dor, a terra, mãe, os homens, deserto, honra, a miséria, o verão, o mar». No recente ensaio Albert Camus, Soleil et Ombre, Roger Grenier deixa claro que nem uma só referência de teor pessimista está associada a qualquer uma dessas palavras nos seus escritos que foram publicados.
O terceiro tema diz respeito à noção de felicidade. Superando a dimensão de tragédia e de solidão associada em regra à noção de absurdo proposta em O Mito de Sísifo, o escritor esforçava-se por exaltar o que acreditava representar, mesmo nos momentos de dúvida, o sentido pleno da estadia humana no mundo. Assegurava em L’Été: «Uma vontade de viver sem nada recusar da vida é a virtude que mais venero neste mundo.» É esta dimensão de uma existência preenchida que é o coração da conceção camuseana de felicidade, o sentimento-motor da sua narrativa singular do mundo. Como perspetiva solar da existência, bebida nas manhãs mediterrânicas da infância que tanto gostava de evocar. As mesmas desse «verão invencível» ao qual regressará no derradeiro romance, O Primeiro Homem, achado por concluir na pasta que transportava no dia da morte.
A defesa da ideia de compromisso é o quarto tema. O conceito de política enquanto espaço de aplicação de um contrato social em condições de superar a mera expressão dos interesses de grupo ou de classe, que fora estabelecido por Sartre, ganhou em Albert Camus um sentido peculiar, o adotado pelo francoatirador, eternamente vinculado à denúncia pública e ao esforço pessoal de emancipação. A liberdade não será então uma dádiva, ou algo que se obtém através da epifania revolucionária, mas uma conquista diária que passa pelo envolvimento permanente com os ideais de justiça e de solidariedade. Esgotada a relativização das certezas imposta na pós-modernidade, a necessidade de uma resposta à presente crise recoloca este tema como fulcral. Contra o «absurdo político» traduzido na obstinação dos Estados em castigar os cidadãos, contra o conformismo, o engajamento do indivíduo permite a criação de espaços de esperança e de reclamação de direitos.
A indignação é o quinto tema que pode materializar a atualidade de Camus e resulta do anterior, pois o compromisso força o sujeito individual a expor-se, assumindo o combate que o seu código ético reclama. Mas jamais pode ser seletiva. «É verdade que a indignação hoje declina. E o pior é que ela se exerce apenas em determinados momentos e com um sentido único. Os nossos protestatários tornaram-se hemiplégicos. Escolhem entre as vítimas e decidem quais são as que merecem preocupação e as que são apenas obscenas», escreveu em «Le Parti de la Liberté», um texto de 1956. Visava, evidentemente, os intelectuais e os políticos melindrados apenas com o que se passava a Ocidente. A verdade é que a indignação não lhe parecia poder ter outro dono e executante que não aquele que a julgava indispensável, fossem quais fossem as circunstâncias.
Catherine Golliau, jornalista da Le Point, ensaiou uma explicação simples mas bastante convincente para as razões da renovada demanda das palavras, das ideias e do exemplo literário e político de Albert Camus: «Porque demonstrou que, mesmo sem motivos para termos esperança, devemos sempre bater-nos.» Tomado tantas vezes como um estranho, un étranger, em diversos domínios de pertença – organizados geográfica, social, filosófica ou politicamente –, Camus permanece, goste-se ou não das suas escolhas e do seu entendimento da vida pública e privada, que reunia numa só, um revelador do que é capaz a liberdade humana quando sustentada pela vontade. Principalmente em tempos adversos à caução das certezas.
Rui Bebiano
Publicado em dezembro de 2013 na revista LER