Nos primeiros tempos de vida da nossa democracia, o racismo permaneceu quase invisível na comunicação social e no debate público, bem como nas iniciativas partidárias e cívicas. Até à Revolução ele estivera em boa parte encoberto pela retórica multirracial do regime e pela dinâmica internacionalista e antirracista da oposição; além disso, por estranho que possa parecer para um país que produziu um império, fora das equipas de futebol e de pequenos núcleos na periferia de Lisboa, a população negra era muito diminuta. A dimensão mais visível e brutal do racismo ocorrera, de facto, nos territórios africanos, tendo sido ela um dos fundamentos da dominação colonial e também da construção dos movimentos emancipalistas.
Com a descolonização esta situação alterou-se profundamente, passando a ser identificado como uma das piores caraterísticas do regime recém-derrubado, ao mesmo tempo que se afirmava a ideia de que a democracia iria transformá-lo num problema do passado. Todavia, seja pela vinda de números africanos e «africanistas» das ex-colónias, logo em 1975, ou, meia década depois, devido ao início da imigração em números mais significativos chegada de Cabo Verde, ou ainda graças à liberdade de expressão que tornou audível o que permanecia silenciado, tanto a realidade sociológica e cultural potenciadora de situações de racismo quanto a consciência da sua existência como problema social alteraram-se profundamente.
A retórica dominante, ainda sobre um racismo «inexistente» ou pouco significativo, convivia agora com uma realidade na qual, subterraneamente, algo de bem diverso ocorria. Em breve ela surgiria à luz do dia, com a multiplicação de queixas, denúncias e crimes, bem como com a organização de campanhas de protesto. Foi neste contexto que apareceram organizações como a associação SOS Racismo, fundada em 1990 e desde logo focada no combate por «uma sociedade mais justa, igualitária e intercultural, onde todos, nacionais e estrangeiros com qualquer tom de pele, possam usufruir dos mesmos direitos de cidadania». O seu trabalho, em breve a par do de outros movimentos e de alguns partidos, tornou visível e menos impune um racismo efetivo que vivia oculto.
Parte considerável das queixas começou, entretanto, a recair sobre quem menos seria de esperar: agentes e esquadras da polícia que face a problemas reais ou amplificados passaram a agir com frequência da pior maneira. Numerosas vezes com uma agressividade desnecessária e desproporcionada, comprovadamente associada à expressão verbal e a atitudes de teor manifestamente racista. Os casos desta natureza têm-se sucedido, com situações inaceitáveis e de natureza criminosa diante das quais governos e tribunais não têm tomado posições firmes de prevenção, rejeição e punição. Com a agravante, agora evidente, de sindicatos da polícia se encontrarem infiltrados por elementos da extrema-direita, politicamente interessados em empolar conflitos para justificar medidas autoritárias e segregacionistas.
Tem emergido, entretanto, uma atitude social que, em vez de ajudar a resolver esta situação injusta e perigosa, tende a complicá-la. Controverso, o termo «racialização» é usado para exprimir o processo social e político a partir do qual camadas da população com uma dada caraterização étnica integram uma sociabilidade e uma cultura tomadas como identificadas e distintas. Trata-se de um dos meios usados pelos racistas para justificarem a segregação e a sua ideia de superioridade étnica e civilizacional. Por outro lado, tem sido utilizado também por setores que entendem que a luta contra o racismo passa por construir espaços identitários fortes e fechados, assentes em práticas e direitos necessariamente diferenciados.
Alguns destes setores procuram «igualar por baixo», tomando como padrão cultural situações, atitudes e valores praticados por setores menos integrados e com um estatuto socioeconómico mais frágil, em vez de promoverem uma efetiva inclusão, capaz de reconhecer o valor absoluto da diferença enquanto fomenta a igualdade dentro de uma sociedade pacífica, equilibrada, justa e realmente igualitária. Ao defenderem, frente ao racismo, uma «guetização» agressiva, tomada como suposta expressão identitária, acabam por cair na armadilha racista. Introduzindo, em nome de um combate social indispensável, um princípio de reforço e de expansão acentuada da diferença que corre o risco de acabar por alimentar as posições dos racistas. Não pode dar-se-lhes essa arma.
Rui Bebiano
Fotografia: José Coelho / LusaPublicado originalmente no Diário As Beiras de 25/1/2020