Práticas e rituais de devoção popular erguidos sobre túmulos ou lugares associados à vida de personagens famosas, tenham elas sido chefes de Estado ou dirigentes partidários, santos ou mártires, atores de cinema ou escritores, músicos ou desportistas, são práticas universais e muito antigas que se mantêm em uso. Funcionam em boa parte, usando o conceito proposto em 1984 pelo historiador Pierre Nora, como «lugares da memória»; através dos quais, no plano simbólico, numerosas pessoas, ou mesmo grupos inteiros, procuram estabelecer uma relação forte com sinais, exemplos e vestígios do passado, destinada a celebrá-lo, mas também a «revivê-lo», potenciando ao mesmo tempo o seu eco e a sua influência no presente.
São também territórios mágicos, onde, como num templo ou lugar sagrado, se estabelecem formas de devoção que intensificam essa influência junto de quem os procura, os celebra e, de certa forma, deles precisa para alimentar a sua fé. Aí se juntam regularmente grupos de fiéis, que creem prolongar a existência e a influência terrena de quem desapareceu e ali está na dupla forma de vestígio e de símbolo. Mausoléus de personalidades como Lenine, Estaline ou Francisco Franco, espaços de evocação do «Che» Guevara ou de Evita Perón, a última residência em vida de Elvis Presley ou a campa de Jim Morrison, preenchem esse papel, associados a modalidades de culto, que invocam a vida e a obra da figura celebrada, sempre rodeados de dinâmicos circuitos turísticos e comerciais.
Em Predappio, na Emilia-Romagna, Itália, ocorre o mesmo com o lugar onde se encontram os restos mortais de Benito Mussolini, um natural, aliás, da localidade. O «Duce» foi executado por guerrilheiros italianos antifascistas, próximo do Lago de Como, em Abril de 1945, após ser intercetado enquanto tentava fugir para a Suíça, tendo o seu corpo sido trazido para Milão. Aqui, em conjunto com a amante Clara Petacci, para uma inequívoca confirmação pública da sua morte, foi por vários dias pendurado de cabeça para baixo numa estação de serviço da Piazzale Loreto. Após algumas peripécias, só em 1957 os seus restos foram depositados no cemitério da localidade.
Esta transformou-se a partir daí – mesmo sendo administrada por comunistas e pela esquerda durante décadas, e tendo na toponímia importantes antifascistas como Antonio Gramsci e Giacomo Matteotti – em lugar de grande valor simbólico para a extrema-direita italiana, assumindo-se nessa qualidade, apesar dos seus escassos 6.000 habitantes, como espaço museológico de encontro e homenagem, regularmente objeto de peregrinações e cerimónias evocativas de saudosos do fascismo e de militantes e organizações da extrema-direita, em particular nos anos mais recentes. Nas estradas circundantes, como nos bares e nas lojas da rua principal, peregrinos e turistas confundem-se nas mesmas pessoas, num ritual permanente de homenagem ao Duce e de ódio à democracia transformado em balão de oxigénio para os fiéis. Como, de forma não menos evidente, até há pouco acontecia com a memória de Franco no Vale dos Caídos.
É comparável a situação de Predappio com aquela que pode crescer no Vimieiro, onde repousa o corpo de Salazar. Já invocado como «notável da terra», poderá em breve – se for para a frente o «centro interpretativo» previsto para a Escola-Cantina com o nome do ditador – ser ali celebrado como «grande de Portugal». Com a inevitável peregrinação de admiradores, seguidores e basbaques fascinados pelo lugar e pelas iniciativas que experimentarão sempre como um culto nostálgico, retrógrado e revanchista. Dizer que tal não vai acontecer, só poderá ser credulidade. Aquele «lugar da memória» poderá trazer lucro a negociantes e felicidade aos saudosos do Estado Novo, mas bom para o conhecimento e para a vida da democracia não será. Sobretudo quando novas formas de nacionalismo e autoritarismo ensombram a Europa, sem que Portugal lhes permaneça imune.
Rui Bebiano
Fotografia: Cerimónia fascista em Predappio / Tiziana FabiPublicado no Diário As Beiras de 8/2/2020